Do trabalho pra casa

Já imaginou que bom seria se a cabeça da gente viesse com uma espécie de dial, que permitisse trocar de estação de acordo com a situação e a nossa vontade? Seria uma maravilha: mais da metade dos sofrimentos do mundo estariam resolvidos. Porque ninguém duvida da incrível capacidade humana de pensar naquilo de que não quer lembrar: é o ex-namorado naquele solitário sábado à noite, o extrato do banco no meio de uma troca de juras de amor e mil outros problemas que primam pela inconveniência na hora de vir à cabeça. E, certamente, um grupo de pessoas se beneficiaria constantemente desse advento: aqueles que não conseguem deixar os problemas do trabalho em seu devido lugar e costumam carregam os pepinos e angústias profissionais para perturbar o ambiente familiar.

A jornalista Ana Carolina da Mota, hoje, deixou de levar os problemas do trabalho para casa, naturalmente. Mas ela garante que já houve épocas em que o sofrimento era constante. “Eu não conseguia me desligar, dormia mal, ficava lembrando das coisas que eu tinha para fazer, levantava no meio da noite pra anotar e não me esquecer das coisas. É uma sensação horrível. A impressão que dá é de que você passou o seu dia e a noite inteira trabalhando, não conseguiu desviar sua atenção para mais nada”, conta ela. Com a advogada Míriam Magalhães, a angústia é semelhante. “Quando estou no escritório, fico com a vontade permanente de correr pra casa e me desligar daquele mundo de problemas. Muitas vezes, chego a perder a concentração e o estímulo por causa disso”, diz. Mas, quando ela finalmente avista sua tão sonhada cama com edredons, almofadas e uma promessa de relaxamento, a situação se inverte. “Fico pensando nos pepinos que não consegui resolver e, muitas vezes, fico me culpando por me achar relapsa. Mas, no fundo, sei melhor do que ninguém que isso é puro sintoma de estresse”, acredita ela.

A psicóloga de Recursos Humanos Patrícia Devunsky afirma que é praticamente impossível não levar problemas do trabalho para casa – e vice-versa – porque é igualmente impossível se dividir em duas pessoas distintas. “Aquela que sai para trabalhar de manhã é a mesma que volta à noite, e que tem filhos, marido, necessidade de se divertir etc. Não há como separar as duas. Mas o que se pode e deve fazer é usar do bom senso e enfrentar os problemas em seus devidos lugares”, argumenta. Segundo ela, problemas profissionais tendem a ser superdimensionados no dia-a-dia do trabalho. O universo de fora do escritório deve servir justamente como um ponto de reflexão sobre a real potência de uma dificuldade. Por isso, os problemas não podem ocupar esses dois mundos da mesma maneira. “Pensar no trabalho fora dele não é mal nenhum. O problema está em fazê-lo da mesma forma com que se faz no dia-a-dia profissional. E quanto mais se puder tomar distância nessa reflexão, melhor. Uma ótima dica é procurar uma atividade física ou relaxante para ser praticada logo após o expediente. É uma excelente maneira de se desligar daquele universo”, sugere ela.

Foi com essa tática que a publicitária Márcia Stepanenku se livrou de fantasmas como clientes, cobranças, idéias e reuniões na sua vida pessoal. E as vantagens não ficaram só nisso. “Eu comecei a fazer kung-fu por orientação de um psicólogo e foi incrível. Me tornei uma pessoa muito menos ansiosa em todos os aspectos, quem convive comigo notou a diferença. Sofria muito com a minha mania de avacalhar meu tempo fora do trabalho, com tarefas, preocupações. Hoje em dia, saio da aula com a cabeça em outras coisas. Tenho cuidado melhor de mim, da minha casa, dos meus filhos, sendo mais paciente”, revela Márcia.

Para finalizar, Patrícia Devunksy faz questão de lembrar que, não é porque os problemas do trabalho não devem ser levados para casa que eles precisam ser sufocados. Falar sobre eles pode ser, sim, muito bom. “Quando já se está levando um problema profissional para a vida doméstica, mesmo que não se fale dele, todos em casa já estão sendo afetados. Nessa hora, é importante identificar as pessoas com quem é possível conversar sobre o problema e argumentar cordialmente. Isso deve ser feito com muito cuidado para que a preocupação, que antes era só no trabalho, não se instale também em casa”, orienta ela. No entanto, não se deve esquecer também que ficar apenas nas discussões e no sofrimento pouco adianta para resolver o problema. Tomar uma atitude bem refletida ainda é o melhor caminho para manter os problemas em suas devidas condições: resolvidos.