Insônia

Insônia é assim: você perde o final do filme no sofá da sala porque cochilou; depois de escovar os dentes e cair na cama, olhos arregalados. Vira para um lado, vira para o outro e volta. Estica as pernas, une as palmas das mãos, fica de bruços e nada. Não adianta torcer membros inferiores e entrelaçar superiores. O que movimenta o cérebro e aperta o coração é que conta. Quem tem insônia fica pensando coisas. E todo mundo sabe que o atalho para o mundo dos sonhos é pensar em nada. Nada só pode ser preto ou branco. Às duas da manhã, penso preto, porque fica escurinho e ajuda a chamar o sono.

Nada não é laranja, cor-de-rosa nem estampadinho. O grande desafio da insônia é justamente pensar em tons de cinza. Me esforço para pensar breu, mas acabo pensando letras. Letras fluorescentes, maiúsculas todas. Letras em néon que se juntam contra a minha vontade formando palavras e frases, que descrevem com detalhes sórdidos os possíveis motivos para a minha falta de sono. Frases enormes, tópicos e setinhas, medo em pisca-pisca, preocupações em negrito. Listas em ordem alfabética. A insônia é audaciosa, como eu.

Quando criança, os desenhos animados me ensinaram a contar carneirinhos. Carneiros brancos pulam a cerca de madeira num cenário bucólico: um, dois, dez, dezenove, até que uma ovelha , a mais gordinha, tropeça e cai

Às três da manhã, apago com uma flanela embebida em álcool todas as palavras, dois ou três palavrões, na lousa em que havia se transformado minha cabeceira. Às três e cinco, parto para novas estratégias para dormir ao menos algumas horas antes de o despertador tocar. A partir de então, não penso somente palavras, mas estatísticas, gráficos, fluxogramas, storyboards. Aí, danou-se.

Quando criança, os desenhos animados me ensinaram a contar carneirinhos. Carneiros brancos pulam a cerca de madeira num cenário bucólico: um, dois, dez, dezenove, até que uma ovelha , a mais gordinha, tropeça e cai. Fico em dúvida se devo continuar a contagem de onde parei. Nesse caso, fico em dúvida se a ovelha que caiu vale ou não na contagem. Fico em dúvida, ainda, se devo recomeçar a contar do zero ou se deixo tudo isso de lado e ajudo a ovelha gordinha a se levantar. Dormir, neca.

Outra técnica que usava na infância para pegar no sono era fingir que já estava dormindo, mesmo estando acordada. Não na hora de dormir, claro, porque nunca fui fácil – muito menos criança. Mas na hora que não era para dormir, como, por exemplo, na hora do jantar – na época, eu detestava comida, assim como fazia cara feia pra meninos e beijos na orelha. Lá pelas sete da noite, eu deitava no sofá e ficava quietinha, de olhos fechados, fingindo dormir. Minha mãe tinha pena de me “acordar” e então eu era liberada da janta. A tática funciona e tem fundamento: ao fingir, a pessoa deve permanecer imóvel, de olhos fechados, com os músculos do corpo relaxados. Antes da terceira garfada da minha mãe, eu já estava, de fato, dormindo. Hoje, mamãe não está.

Às quatro e dezoito, entro em pânico. O despertador tocaria às sete, faço as contas em números cor-de-abóbora, atraso o alarme em quinze minutos. Tenho uma idéia: fico paradinha, olhos fechados e corpo relaxado, fingindo não apenas dormir, mas sonhar. É isso: vou fingir que estou sonhando. Agora eu quero ver. Vou sonhar e depois dormir. Perfeito. Ok. É isso. Não tem erro. Sonho com quê? Com quem? Não, você, não. Você, não. Isso não. Não! Já sei: Teté. Vou sonhar com Teté, a vizinha solitária que, a essa hora, deve estar dormindo do lado de lá da parede, com máscara nos olhos, pijama de flanela e travesseiro entre as pernas. No sonho, somos duas princesas, moramos em castelos vizinhos no interior da França. Temos cabelos compridos, louros, usamos vestidos rodados e temos cinturinha de pilão. Estou andando pelos meus jardins verdes, cobertos por flores do campo, trigo, passarinhos. Riacho. Peixes. Cavalos. Vejo Teté, a vizinha, a princesa do 804. Ela acena e vem em minha direção. Diz que leu a coluna da semana passada, me dá a mão. Teté se emociona e se apresenta em um abraço. Teté não se chama Teté, mas Carmita. Às quatro e vinte e seis, durmo. E esqueço tudo.