Sob a mão com unhas feitas e pele hidratada está um volante de, em média, 42 cm de diâmetro. Nos olhos, um retoque no lápis e a atenção redobrada para quilômetros de viagem. Uma profissão que antes exigia muito da força masculina, hoje tem requerido cada vez mais a delicadeza do toque feminino. Quem são essas batalhadoras que topam o desafio de ganhar a vida como caminhoneiras?
A decisão de ingressar em um mercado de trabalho tão masculinizado já é um desafio. A união de uma máquina tão bruta e pesada com a sutileza da mulher soava incompatível, principalmente há uma década. Apesar de gostar de guiar, a caminhoneira urbana Neide dos Santos não se imaginava à frente de um caminhão. “Eu pensei primeiro em fazer transporte escolar”, lembra. Sem alternativa como autônoma, Neide aproveitou a oportunidade para realizar testes como caminhoneira.
Já Solange Beraldes começou com um automóvel para fazer transporte escolar. Hoje é motorista de carretas. A ideia de lidar com um veículo de tais proporções atemorizava Solange. “Na primeira viagem que fiz, eu suei tanto que até torcia para o sinal fechar, para poder dar uma respirada”, recorda.
Para ambas, a insegurança é normal. “No início bate um medo por causa do tamanho do caminhão. Depois você vai tirando de letra. Nós, mulheres, temos mais jogo de cintura para nos adaptar. Não paramos na primeira dificuldade”, garante Solange.
Superada a fase de adaptação, o próximo desafio a enfrentar é o preconceito. O mito de que “mulher ao volante é perigo constante” e outras piadinhas com teor machista tiram as motoristas do sério. “Já ouvi muito desaforo, a gente perde um pouco a paciência. Sempre tem uns engraçadinhos, dá vontade de buzinar e retrucar”, confessa Neide, enquanto Solange relembra um episódio de desconforto: “Uma vez, em uma viagem à noite, tive um problema elétrico na carreta e parei em um posto rodoviário. Os guardas rodoviários comentavam que, caso eu fosse mulher de um deles, não estaria trabalhando naquilo. Fiz aquele sorriso amarelado e relevei”.
Os olhares desconfiados não partiam somente do dia a dia no trânsito. Segundo as caminhoneiras, os próprios companheiros de profissão olhavam torto. “Eles demonstravam um certo medo de nós estarmos invadindo o espaço, ocupando o lugar que era deles”, confessa Neide.
Uma rotina de estradas não deve ser nada agradável e muito menos relaxante. E, na vida da mulher, a rotina dupla – às vezes tripla – pode potencializar ainda mais o stress. Para Neide, o segredo está em não trazer os problemas de casa para o trabalho e vice-versa. “A mulher tem uma rotina muito mais pesada, não pode carregar os problemas. A gente volta para casa pensando no que ainda tem que fazer. Eu, por exemplo, acordo às 6h, levo as crianças para a escola, vou ao mercado, preparo o café da manhã, o almoço e só depois é que vou para a batalha”, enumera Neide, que trabalha no itinerário urbano de São Paulo, constantemente engarrafado. “A gente se acostuma com congestionamento, enchentes e outros imprevistos”, revela.
Já para Solange, que costuma fazer o trajeto noturno entre São Paulo e Campinas, o trabalho é uma terapia. “Estou sempre curtindo uma música no meu rádio. Às vezes coloco uma rádio de notícias para ficar mais atualizada. Para mim, a cabine do meu caminhão é uma sala de cinema, você tem toda aquela paisagem à sua frente. Até esqueço que estou trabalhando”, deleita-se.
Família de caminhoneiro sempre sofre. Pelo menos era assim que se pensava sobre os condutores que deixavam suas famílias por longos períodos para fazer entregas de carga por todo o país. Segundo Neide, dentro de casa há o reconhecimento e o apoio total. “Quando um dos meus filhos diz o que eu faço para os amigos, todos se surpreendem positivamente”, conta ela. O ambiente muito masculino pode despertar um ciúme no companheiro, mas, segundo a caminhoneira, nada que gere crise. “A única diferença é que, quando estou de férias, não quero dirigir de jeito nenhum”, brinca.
A vaidade, elemento diferencial, vai de carona na boleia. “Eu me arrumo como se estivesse indo para um escritório. Quando posso, passo uma chapinha. A gente está procurando mudar o conceito. Ainda existe o preconceito de as pessoas acharem que não nos cuidamos”, conta. A boa aparência, segundo ela, são características que não interferem na qualidade do serviço prestado. “Sempre estou maquiada, com brinco, uso batom, protetor solar”, elenca Neide.
Neide e Solange foram motivadas a ingressar na profissão pela oferta de vagas exclusivas para a mão-de-obra feminina na empresa em que ambas trabalham atualmente. Em um ramo no qual o transportador também faz a entrega do produto, Luiz Carlos Lopes, diretor de operações da companhia, afirma que a reação dos clientes ao se deparar com uma mulher no volante de um caminhão foi muito positiva e agregou valor à imagem da empresa. O desafio foi também evitar uma receptividade ruim dos funcionários à nova filosofia. “No começo foi muito ruim. Aconteceu aquele preconceito natural e uma reação negativa dentro da empresa. Mas conseguimos, através de reuniões e conversas, quebrar esse paradigma”, conta.
Com o tempo, alguns comportamentos presentes nas mulheres acabaram sendo identificados como benefícios para a profissão. Os cuidados com a manutenção e o bom estado dos caminhões foram os primeiros resultados. Além disso, a condução feminina é mais segura e econômica. “Elas são mais cuidadosas justamente por estarem iniciando no ramo. Os homens, já acostumados, acabam aprendendo com elas, observando os bons exemplos. Elas trouxeram os homens para uma nova realidade”, pondera.
Quanto à capacidade de dirigir os veículos, Lopes assegura que “competência não tem sexo” e, nos outros quesitos, elas levam ligeira vantagem. “A mulher tem uma capacidade de gestão melhor que a dos homens. Elas gerenciam melhor o tempo, têm uma visão mais detalhista do processo. Dão mais feedback das atividades à empresa”. Para Neide, a mulher está conquistando os espaços sem precisar entrar em conflito com o sexo oposto. “Elas já chegaram até a presidência. Os homens já tem a experiência, nós temos alguns truques”, conclui.