“Sentia que minha vida poderia deixar de existir”: o duro relato de violência doméstica de Maria da Penha

O caso de violência doméstica vivido por Maria da Penha Maia Fernandes é um dos mais emblemáticos do Brasil, graças à trajetória da cearense na luta por justiça contra o seu agressor. Sua história se tornou uma referência e fez com que entidades internacionais pressionassem o Brasil a mudar sua legislação. Desde 2006 seu nome é usado para se referir à lei nº 11.340, que busca coibir atos de violência contra a mulher. E a história dela inspirou muitas outras “Marias” ao longo dos últimos anos.

Maria da Penha relatou os momentos que viveu no documentário ” Mexeu com Uma, Mexeu com Todas” (2017), de Sandra Werneck. O filme reúne diversos depoimentos de mulheres que também sofreram violência de seus parceiros, e joga luz sobre um problema ainda longe de acabar no Brasil.

A produção está disponível no streaming VIX Filmes e TV e pode ser assistida gratuitamente pela versão web ou baixando o aplicativo no seu celular, na App Store ou no Google Play. Também é possível assistir à programação em plataformas de TV conectada, como Amazon Fire, Apple TV, Roku e ChromeCast.

O que aconteceu com Maria da Penha

Maria da Penha viveu um terror em seu casamento, que teve início em 1976. Após alguns anos de boa convivência, seu companheiro, Marco Antonio Heredia Viveros, passou a agir de forma explosiva, sempre intolerante com a esposa e as filhas. Aos poucos, a explosão se tornou violência, o que passou a se intensificar pouco a pouco, até atingir o ápice em 1983, quando Maria foi vítima de dupla tentativa de feminicídio.

Marco Antônio deu um tiro nas costas da esposa enquanto ela dormia, o que deixou Maria da Penha paraplégica, além de ter sofrido outras complicações físicas e traumas psicológicos. Nada foi feito contra o agressor naquele momento, já que o homem inventou que o ferimento teria sido causado durante um assalto. Após retornar do hospital, Maria passou a ser mantida em cárcere privado. Nesse período, o então marido tentou eletrocutá-la durante o banho. Maria sobreviveu e, com ajuda da família e de amigos, além de apoio jurídico, conseguiu sair de casa com as filhas.

São esses os momentos que Maria da Penha narra no documentário, dando detalhes de como sua luta acabou movimentando a legislação brasileira e ajudando tantas outras mulheres. Leia trechos do relato abaixo.

Relato de violência doméstica

A minha mãe deixou de trabalhar quando eu nasci porque ela era muito dedicada à família. Fiz mestrado em Parasitologia de Análises Clinicas, na USP. Foi nesse momento em que eu conheci a pessoa que eu escolhi para casar. Ele era um estudante oriundo da Colômbia.

Eu percebi que meu marido era uma pessoa agressiva no momento em que ele naturalizou-se brasileiro e começou a me dominar. Eu não sabia mais como aquela pessoa amanhecia ou como chegava do trabalho. Minhas filhas eram maltratadas. Nossas filhas eram maltratadas! Elas não tinham direito de ser crianças. Eu não pude tomar uma atitude agressiva porque eu sentia que minha vida poderia deixar de existir.

[Após o crime] foi colocado que eu precisava ir para Brasília, para o Hospital Sarah Kubitschek, porque lá era o maior centro de reabilitação. E que eu voltaria a andar. Eu tinha essa esperança. E foi em Brasília que eu tive a certeza de que eu não voltaria a andar.

Quando eu voltei, quando eu cheguei em Fortaleza, ele já foi sendo mais contundente: “Olha, não quero vizinho lhe visitando, não quero família lhe visitando. Você vai ter que se superar”. Então, naquele momento, eu disse pra mim mesma: “Não tem jeito. Como é que eu vou sair dessa?”.

Pedi à menina para ligar do telefone da rua – e tudo eu fazia com o telefone público – que ligasse para os meus pais e pedisse para eles que providenciassem uma separação de corpos, porque eu ia sair de casa. E houve uma dificuldade para se conseguir isso. A minha irmã foi em um advogado e ele falou que ele achava que eu devia esperar mais porque eu devia estar muito traumatizada. E ele também traumatizado pela minha situação. Um outro advogado que foi solicitado e ele deu [a separação] então.

A minha luta para que ele fosse punido demorou 19 anos e 6 meses. Nesse período, ele foi julgado por duas vezes, no júri popular. Por duas vezes foi condenado e por duas vezes saiu do fórum em liberdade. Então, no intervalo do primeiro para o segundo julgamento, eu fiquei decepcionada com a posição do judiciário, engavetando o processo. E aí o movimento de mulheres começou a me levantar o astral.

Se você abandonar o caso, é o que eles querem. Os agressores de mulheres não vão pagar pelos que fizeram. E você está viva, você tem que lutar.

Então eu me apossei disso e escrevi, no intervalo do primeiro pro segundo julgamento, o livro “Sobrevivi… posso contar”.

Me ligaram e perguntaram se eu queria denunciar o Brasil na OEA [Organização dos Estados Americanos ], porque o Brasil já tinha assinado tratados internacionais se comprometendo a combater a impunidade dos agressores de mulheres e ainda não estava acontecendo isso. E eu estava exemplificando, nesse livro, um caso típico de negligência do poder judiciário.

A pressão internacional mandou quatro ofícios ao Brasil, em nenhum momento o Brasil respondeu, e então eles fizeram um relatório condenando o Brasil e orientando a modificar as leis do país, para que esses casos não se perpetuassem. E solicitava o cumprimento da pena. O encerramento do processo e o cumprimento da pena.

Então, em 2001, faltando seis meses para o crime prescrever, ele foi preso na cidade do Rio Grande do Norte, em Natal.

De pena, foram 13 anos. Com redução, [mais] redução, ficou em oito. Ele passou apenas dois anos preso em regime fechado, e hoje está em total liberdade.

(…) Eu esperava que a lei estivesse ainda mais atuante, mas a gente sabe que, nos pequenos municípios, com raras exceções, a gente não tem a politica pública que faça com que a lei saia do papel. A comunicação é importante sim, tem ajudado as mulheres, mas é necessário que o gestor público se comprometa com a questão da violência contra a mulher.

Nós fomos criados dentro das nossas casas onde aquela violência era abafada. Nem os familiares tinham conhecimento, porque era vergonhoso. É como se a mulher fosse taxada de incompetente porque tinha que fazer com que sua casa fosse harmônica. Você imagina o quanto a mulher já melhorou o mundo? Então, a gente precisa realmente que os homens se conscientizem disso, porque esse homem vai se tornar uma pessoa de muito mais valor para a mulher, com certeza.

(…) E se a gente não mudar o mundo hoje, através do que a gente tem de positivo, que é uma lei que deu um amparo e é considerada uma das melhores leis do mundo pela ONU [Organização das Nações Unidas], se a gente não conseguir fazer isso agora, quando será? A hora é essa.