Geléia de morango

Em casa, cozinha sempre foi coisa de homem. Meu pai, filho de imigrante alemão com suíça, ambos saídos da Europa naquela brecha de tempo entre a Primeira e a Segunda Guerras, passou a vida ouvindo coisas como “neste casa, nonn se desperrdiça comida!” ou “pense nos crrriancinhas famintas do Suíça!”. Apesar de eu saber hoje que as criancinhas nunca passaram fome na Suíça, o discurso patriótico calou fundo na alma do meu pai que, de tanto ver, aprendeu cedo a cozinhar com bom senso e a se virar entre as panelas. Assim, quando muitos anos mais tarde, lá pela década de sessenta, ele se casou com uma típica filha da classe média-alta nordestina, não consegue conter um certo choque ao ver que a moça, minha mãe, não sabia nem ferver água.

Depois do arrebatamento da lua-de-mel, papai resolveu iniciá-la num outro tipo de arte carnal: a culinária. Relutante e apaixonada, ela ouviu a tudo atentamente, deliciando-se com a desenvoltura do marido na cozinha e antevendo momentos de puro gozo entre tigelas e peneiras. Mas papai tinha objetivos mais práticos. Assim, quando o telefone tocou numa tarde ensolarada de domingo com a notícia de que a irmã paulista havia despachado umas caixas de morangos, de avião, para Recife, ele prontamente cancelou o boliche com os amigos e disse, triunfante:

– Hoje, vamos ficar em casa, fazendo geléia!

Resignada, mamãe tirou o aventalzinho imaculado do enxoval e apresentou-se, disposta. Depois de quase duas horas limpando as frutinhas brilhantes e exóticas, desconhecidas no nordeste daquela época, ele explicou, didático:

– Para cada quilo de morango, pese 750 gramas de açúcar. Aí, coloque num panelão respeitável e deixe macerando por umas duas horas.
Ela: – Enquanto isso, a gente podia…
Ele, pragmático, como sempre: – Fazer a receita da massa! Grande idéia.

Arfante com o calor nordestino e com a maçada, mamãe precipitou-se para o quarto, à beira das lágrimas. Papai nem se deu ao trabalho de buscá-la. Gritou, da cozinha mesmo, para que ela voltasse. Afinal, não podia abandonar a geléia

Trouxinhas de Geléia

2 xícaras de manteiga

2 xícaras de ricota

2 xícaras de farinha de trigo

1 colher de chá de sal

Misture todos os ingredientes, divida a massa em 4 partes e deixe descansar na geladeira por uma hora. Abra a massa e corte em quadradinhos de 8 a 10 cm. Ponha em formas de empadinha untadas, acrescente uma colher de chá de geléia no centro de cada quadrado (a geléia, no caso, é a que está “macerando” no panelão), dobre as 4 pontas para o centro, formando uma trouxinha e asse em forno quente (200 °C,) por 20 minutos. Quando sair do forno, polvilhe com açúcar de confeiteiro.

Duas horas depois, maceração completa, mamãe já de muito mau humor com a perda do boliche, com idéias assassinas sobre a cunhada paulista e pensando seriamente em sabotar a “operação geléia”, voltou para perto do marido, para acompanhar o cozimento. Não era possível que demorasse muito mais.

Dar o ponto na geléia de morango é um capítulo à parte. O problema é que quando a mistura começa a ferver, sobe uma maldita espuma rosada que ameaça transbordar o tempo todo e que efetivamente transbordará se não for removida, incansavelmente, com uma escumadeira.

– A gente não pode ver televisão enquanto isso? – perguntou mamãe, abatida.
– De jeito nenhum! Não podemos sair de perto da panela nem um minuto.
– E quantos minutos isso leva?

– Bem, querida, depende da quantidade de geléia. No nosso caso, que são uns quatro quilos, não deve levar mais que umas duas horas e meia a três horas.

Arfante com o calor nordestino e com a maçada, mamãe precipitou-se para o quarto, à beira das lágrimas. Papai nem se deu ao trabalho de buscá-la. Gritou, da cozinha mesmo, para que ela voltasse. Afinal, não podia abandonar a geléia. Pelo menos, o cheiro era delicioso. Um aroma rico, exótico, visceral, que em pouco tempo começou a despertar a curiosidade e a volúpia dos vizinhos. Depois de algo entre duas horas e a eternidade para a minha mãe, papai sacou um pires e, com a ponta da colher de pau, começou a pingar gotinhas de geléia na superfície branca de tempos em tempos. Uma gotinha; depois outra, e mais outra, até que finalmente foi decretado “o ponto” da geléia. Encheram uma dúzia de potes com a geléia ainda quente, parando diversas vezes para atender à porta. Eram os vizinhos, intrigadíssimos com o cheiro e loucos para participar do que quer que estivesse havendo.

Mais conformada com a perda do boliche, mamãe apresentou-se para abrir a massa (que já havia ficado muito mais que uma hora na geladeira) e concluir as benditas trouxinhas de geléia, divididas, ainda quentes, com vizinhos ávidos.

Não sei exatamente o que aconteceu depois; ambos são muito discretos e reticentes, mas o fato é que eu nasci uns nove meses depois disso e sempre fui capaz de cometer loucuras por um pote de geléia caseira de morango!