Acordar no meio da noite para trocar o lençol das crianças não é nada agradável, mas faz parte do ofício dos pais e acontece nas melhores famílias. Fazer xixi na cama é, a princípio, algo absolutamente normal. Mas se a roupa de cama não está dando conta das incontinências noturnas dos pequenos, o que anda tirando o sono de pais e filhos pode ser a enurese, uma doença simples, mas muito incômoda. Ela aparece em crianças com mais de cinco anos e, além de criar constrangimento, acaba mexendo com a auto-estima delas. O tratamento é fácil, mas requer dedicação e muita atenção dos pais.
A bibliotecária Cátia Gomes, 36 anos, que fez xixi na cama até completar nove, enfrentou a mesma situação com a filha, que molhava a cama duas ou três vezes por semana até fazer sete anos. “No início, a Gabi me acordava assustada e pedia pra eu trocar o lençol e o cobertor e secar o plástico que forrava o colchão. Quando ela ficou maiorzinha, aprendeu a trocar a roupa de cama sozinha e voltava a dormir sem me acordar”, conta Cátia. Com ela, o problema foi embora sozinho. “Mas eu me arrependo de não ter procurado a ajuda de um médico ou de psicólogo antes. Minha filha se tornou uma criança triste e fechada, sem vontade de viajar e dormir na casa das amiguinhas”, lamenta.
Segundo a urologista pediátrica Sylvia Faria Marzano, que atende a várias crianças com o problema, a enurese é hereditária. “Já foi provado que é de transmissão familiar. Há um índice de 44% de ocorrência de enurese se um dos pais foi enurético, e de 77% se os dois tiverem sido enuréticos”, afirma. O tratamento, em pacientes que não apresentam problemas de má formação, é bem simples. “A medicação aumenta imediatamente a probabilidade de noites secas, reduz o desespero e o aborrecimento maternos, restabelecendo um sentimento de confiança com a criança”, esclarece Dr. Sylvia, lembrando que, para melhor eficácia, é necessário levar em consideração as atitudes dos pais e o compromisso com o tratamento. O remédio, sem efeitos colaterais, deve ser tomado antes de dormir. A criança também não deve beber água nesse horário. Como estímulo, o pequeno paciente ganha de presente um calendário. “Cada dia em que não faz xixi ou faz em pouca quantidade, desenha um solzinho. Quando faz, desenha uma chuvinha. Na segunda consulta, 15 dias depois, já dá para perceber um sorriso no rostinho delas”, afirma a especialista.
Para a psicóloga Norma Lottenberg Semer, do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, crianças que molham os lençóis com freqüência durante a noite, após ter completado cinco anos de idade, podem estar sinalizando para pais e familiares que estão com problemas de auto-estima e precisando de ajuda. A terapeuta chegou a essa conclusão ao realizar uma pesquisa com 52 crianças, entre cinco e onze anos, de uma unidade pediátrica assistencial da favela de Paraisópolis, em São Paulo. “O trabalho revelou também que essas crianças são, em geral, mais tímidas, inseguras e imaturas do que aquelas que não apresentam o problema, além de revelarem outros sintomas associados, como problemas escolares ou de aprendizagem e isolamento social. Por outro lado, o grupo de crianças que não apresentava esse quadro tinha claramente maior capacidade de imaginação e percepção da realidade”, compara Norma.
Muitas pessoas acreditam que a criança deixa de fazer xixi na cama sozinha antes de chegar à idade adulta. No entanto, de acordo com a especialista, dependendo da estrutura emocional de cada um deles, da maneira com que os pais tratam a questão e do tempo de duração da doença, a enurese pode ser precursora de depressão e até levar os futuros meninos a desenvolverem um quadro de ejaculação precoce. A psicóloga afirma que é fundamental trabalhar a auto-estima, antes mesmo que eles comecem a dar os primeiros passos.
Tanto a psicóloga quanto a urologista condenam veementemente repreender a criança que fez xixi na cama. Para Norma Semer, essa situação provoca muita frustração e raiva no ambiente pois, muitas vezes, a mãe se sente culpada por não ter ensinado o filho a se controlar. “É importante explicar para os pais que ninguém faz xixi na cama porque quer ou por preguiça. Eles precisam ficar atentos para o que pode estar significando aquele sintoma e não repreender”, ensina a terapeuta. Sylvia Marzzano passou por uma situação inusitada em seu consultório. “Uma vez, uma mãe ficou tão irada que colocou o colchão molhado na sacada da casa só para os vizinhos verem”, recorda a médica. Segundo a psicóloga, o preconceito é ainda maior em classes sociais menos favorecidas. Geralmente as crianças dormem juntas no mesmo quarto e, quando fazem xixi durante a noite, acabam molhando os irmãos.
No entanto, nem sempre a crítica parte dos pais. A secretária Mônica Gomes ficou indignada quando flagrou a empregada doméstica da família brigando com Diogo, de cinco anos, porque ele tinha molhado o lençol e a colcha. “Ela ficou com raiva porque tinha que lavar sempre a roupa de cama e chamou meu filho de fedorento”, conta. “Tentei manter a calma, tranqüilizei meu filho e tive um papo sério com a Vera”, revela. Gabriela Gomes, de oito anos, enfrentou outro tipo de constrangimento quando dormiu na casa da melhor amiga. “Fiz xixi na cama da Luísa e ela disse que ia espalhar para a escola inteira”, lembra a menina, que precisou da interferência da mãe da colega para reverter a embaraçosa situação.
O ideal é consultar um especialista, não só para observar os outros sintomas que podem estar envolvidos, mas também para acabar com os lençóis molhados o mais cedo possível. A auto-estima de seu filho agradece.
Agradecimentos:
Norma Lottemberg – Doutora em Psicologia
Departamento de Psiquiatria da Unifesp
Autora da tese de doutorado “Estudo da auto-estima em crianças enuréticas pelo método do Rorschach”
http://www.unifesp.br/dpsiq/posgrad/teses/norma.htm
Sylvia Faria Marzano – Médica
Urologia Pediátrica
www.marzano.com.br/left1/enurese.htm