Caso de menino desesperado ao saber que viverá com pai é ainda mais complexo: especialistas explicam

Na última semana circulou pela web o vídeo de um menino de 6 anos que, ao descobrir que voltaria a morar com o pai, após decisão judicial, entrou em desespero. As imagens causaram comoção popular e até páginas em apoio ao garoto foram criadas no Facebook. Sandra Vilela, advogada especialista em direito de família, e Raquel Benazzi, psicóloga infantil do Grupo Terapêutico Núcleo Corujas, comentaram o caso exclusivamente ao Bolsa de Mulher e explicaram sobre guarda e acolhimento emocional após a  separação dos pais.

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Caso do menino Samuel: entenda o que aconteceu

Rosilene Batista Silva foi casada com o pai de Samuel, cujo nome não foi divulgado, por pouco mais de um ano. Após a separação, a mãe deixou o garoto com o ex-marido. Depois de quatro anos, após receber uma denúncia de violência, a mãe buscou o garoto e entrou com processo de revisão de guarda.

De acordo com informações concedidas em entrevistas à Rede Record, Rosilene, ainda na gestação, registrou um boletim de ocorrência contra seu companheiro por agressão. Mas, próximo do nascimento do filho, o casal se reconciliou e a queixa foi retirada.

Após o parto, as violências voltaram a acontecer e a mãe se separou do pai da criança. Em entrevista à Rede Globo, Rosilene afirmou que teve que deixar a guarda do filho com o pai, em 2012, porque o ex-marido a ameaçava constantemente. Ela ainda comentou que, embora tivesse o direito de visitá-lo aos finais de semana, o ex-marido não permitia o contato e nem atendia suas ligações.

Em agosto de 2015, a mãe conta que recebeu uma ligação de sua ex-cunhada pedindo para que ela buscasse o filho, que estava sofrendo constantes agressões do pai e da madrasta. Rosilene, ainda em entrevista, contou que, nesse momento, procurou ajuda da Defensoria Pública de Brasília e da Vara da Infância e Juventude e foi orientada a ir até a casa do pai, em Capivari, São Paulo, e trazer o menino até Brasília, onde os órgãos poderiam atuar no caso. No Brasil, respeitando a jurisdição, entidades de poder estadual não podem alterar leis ou julgar processos de outros Estados.

Em setembro, Rosilene viajou até o interior de São Paulo e levou o menino para Brasília. Após dar entrada ao processo judicial, o juiz concedeu à mãe a guarda provisória de Samuel.

O processo correu, investigações e audiências foram feitas e, em declaração anexada ao processo, a conselheira tutelar de Capivari, cidade do pai, atestou que não era possível identificar sinais de maus tratos. Já a conselheira tutelar e a assistente social de Riacho Fundo, região administrativa do Distrito Federal, relataram que o menino diz sofrer violência e ter medo do pai e da madrasta. Em janeiro de 2016, no entanto, o juiz devolveu a guarda do menino para o pai.

Ao ficar sabendo da determinação, o menino entrou em desespero e um familiar gravou toda a sua reação. No vídeo, além de chorar e dizer que promete não mais abandonar sua mãe, Samuel ainda diz que o pai e a madrasta o agridem.

O material foi disponibilizado da web e o caso causou comoção popular. Alguns internautas associaram o  caso de Samuel ao do menino Bernardo, que foi morto pela madrasta mesmo depois de ter feitos denúncias ao Ministério Público.

Parte legal

A advogada Sandra Vilela, ao ser questionada sobre o caso, explica que, antes de qualquer análise, é preciso pontuar que não é possível associar o caso de Samuel com o de Bernardo. Isto porque, de acordo com a profissional, o contexto é outro. “A mãe de Bernardo era falecida e, como no Brasil juiz não tem o hábito de dar a guardar para a avó, ele errou quando deixou o menino com o pai”, comenta.

Ela ainda diz que as situações são diferentes porque, no caso de Samuel, o juiz foi diligente, pois acolheu as alegações da mãe – e é exatamente por isso que o menino ficou por quatro meses com a guarda provisória materna. Além disso, Sandra explica que a tendência do judiciário brasileiro é sempre deixar o filho com a mãe. “O poder judiciário no Brasil acredita na mãe. Quando ela chegou com a criança em Brasília, o juiz imediatamente concedeu guarda provisória para, depois, analisar o caso com cautela. Foi somente no final do processo que a guarda foi devolvida para o pai. Isso prova que ele teve cuidado e investigou todas as particularidades do processo”.

A profissional alerta, no entanto, para um grave problema: a alienação parental, que ocorre quando um dos pais estimula no filho um sentimento de repúdio injustificado pelo outro genitor. “Quando eu assisti ao vídeo, percebi que a primeira coisa que a criança fala é: ‘Eu não vou deixar mais a minha mãe, eu prometo’. Ele se coloca como se fosse o culpado pelo primeiro abandono ou por ter ficado longe da mãe. Isso me deixou com a pulga atrás da orelha porque o fato de uma criança chorar e dizer que quer ficar com um ou outro genitor não é suficiente. Pai e mãe conseguem incutir na cabeça dos filhos uma situação que não ocorreu. Não é esperado um comportamento desse em um menino de seis anos. Se a agressão fosse verdadeira, ele primeiro ia falar da agressão, e não do abandono. Esse é o grande alerta”, defende.

Sandra ainda explica que conselheiras tutelares e assistentes sociais não têm conhecimento técnico para analisar casos em que uma criança está sob alienação parental. “O trabalho delas é relatar o que a criança diz. Mas somente uma psicóloga pode detectar se o relato é genuíno ou se está sob efeito de uma falsa memória incutida por um dos genitores”. Durante um processo, uma equipe multidisciplinar treinada, que inclui, além das conselheiras e das assistentes, psicólogas especializadas nesse tipo de caso, promotores e juízes, é responsável pelas conclusões.

Lado emocional

Já a psicóloga diz que, através do vídeo, parece que o menino tem uma relação estranha com o pai ou medo de voltar para a casa dele, e que o juiz certamente deve levar isso em consideração, mesmo que legalmente crianças pequenas não devam oficialmente ser ouvidas. Mas, Raquel reforça que, para detectar maus tratos, são necessárias várias entrevistas com a vítima e que, exposto a uma câmera, o menino pode demonstrar ainda mais medo ou insegurança.

A especialista diz que, tão importante quanto as denúncias da agressão, é a insegurança que essas mudanças causam na criança. “Ele morava com o pai, com quem tinha um vínculo. Depois, passou quatro meses com a mãe. Aí, quando começou a estabelecer uma nova relação de segurança, foi retirado novamente. Criança não é boneco. A cada vez que ela é retirada do seu meio, que muda de casa ou de cidade, ela diminui a confiança que tem no outro”, explica.

De acordo com Raquel, esse tipo de situação afeta a base de segurança da criança, que pode ter uma série de consequências imediatas e futuras. Entre as imediatas, a psicóloga cita a dificuldade em reestabelecer o vínculo com pai, o aparecimento de medos, a regressão no desenvolvimento, como pesadelos e a volta do xixi na cama e, principalmente, a culpa. “A criança passa a se perguntar o que fez para ser retirada de um lugar onde ela se sentia segura e, com isso, começa a criar fantasias, achando que a culpa pelo ocorrido é sua”, exemplifica.

Já entre as consequências futuras, Raquel lista a possível dificuldade de confiar e se relacionar com o outro, a incapacidade de lidar com frustrações de forma centrada, o desenvolvimento da agressividade ou da vingança – já que o indivíduo pode querer, mesmo inconscientemente, que o outro sofra tudo aquilo que ela já sofreu -, a introspecção, a ansiedade e outros tipos de fobia.

Vídeo do Samuel

A psicóloga também cita a gravação do vídeo e explica que, naquele momento, mais importante do que colher provas para dizer que o menino não aceitou a decisão do juiz, era acolhê-lo. “Se a criança falou que não queria o pai, talvez naquele momento o melhor fosse, de fato, o pai não aparecer. A pessoa mais indicada é aquela que a criança está solicitando. Então, nesse caso, a mãe, mesmo fragilizada e emocionada, poderia chegar e falar que tudo ia ficar tudo bem, que ela ia tentar recorrer e continuaria presente na vida do filho mesmo ele indo morar com o pai. Foi mais importante gravar o vídeo como prova do que se importar com o que estava passando na cabeça da criança. Quanto mais ela ficou exposta, mais se sentiu abandonada. É como se fosse uma queda sem fim: enquanto ninguém acolher, conversar, abraçar, ela continua com a sensação de que está caindo”, pondera.

Divulgação do vídeo na internet

Para a advogada, a divulgação do vídeo na internet pode ser outro problema e sinal de desespero. “Processos de família correm em segredo de justiça e não cumprir essa determinação incorre em crime. Essa mãe brigou no judiciário, não conseguiu ganhar e me parece que, como perdeu por não ter razão, achou que disponibilizando o caso para a opinião pública ia conseguir alguma revogação”, comenta.

Já a psicóloga lembra que, além da exposição do pai, que pode ser prejudicado em sua vida social, a divulgação do material na web afeta diretamente a criança, que pode sofrer bullying na escola ou ser penalizado em casa caso exista, de fato, os episódios de agressão. “Essa criança pode ser vítima de chacota na escola. Por exemplo, os amiguinhos podem tirar sarro porque ele apareceu chorando. Mas, a atitude também pode fazer com que esse suposto pai agressor reforce seu comportamento violento e puna a criança”, explica.

Guarda dos filhos no Brasil

No Brasil, desde 2014, quando a lei 13.058 foi aprovada, após a separação dos pais, a guarda compartilhada passou a ser obrigatória. “Na prática, significa que os dois genitores serão responsáveis pela vida do filho e terão que conviver o mais próximo possível. Ela serve principalmente para evitar os casos de alienação parental”, explica a advogada.

Nesses casos, a residência também pode ser fixada pelo juiz, não obrigando a criança a se dividir entre duas casas, mas determinando que a responsabilidade e a convivência sejam de obrigação da mãe e do pai.

Sandra explica, no entanto, que em casos graves, como quando o pai ou mãe é agressivo, por exemplo, a lei não se aplica e o juiz pode determinar a guarda unilateral a um dos genitores ou aos avós.

Outro caso em que a guarda unilateral é determinada é quando um dos lados não quer ficar com o filho. “Antes a gente precisava do consenso das duas partes para dar a guarda compartilhada. Então, por exemplo, se a mãe não aceitasse, o juiz não dava. Agora, a guarda compartilhada é a regra e ela só não se aplica quando, por exemplo, o pai não quer ser responsável pelo filho. Aí infelizmente não temos como obrigá-lo, exceto no pagamento da pensão. Não precisa do consenso dos dois, mas é preciso que os dois queiram. Impedir um dos dois, casos eles queriam, não é mais possível”, exemplifica a especialista em direito.

Como saber se meu filho vai ficar bem depois da guarda compartilhada?

Depois da guarda estabelecida, embora o monitoramento não esteja previsto em lei, ele é esperado do judiciário, que pode determinar o acompanhamento de conselheiras tutelares e assistentes sociais. “O acompanhamento não é regra expressa, mas, o bom senso dos juízes e dos advogados geralmente levam a ele”, diz a advogada.

Revisão de guarda dos filhos

E, mesmo depois do processo finalizado, Sandra diz que as partes podem, a qualquer momento, dar entrada em outro processo para novas investigações. “Se o juiz não pede um acompanhamento, a família pode solicitá-lo no conselho tutelar e, ainda assim, a qualquer momento um novo processo pode ser aberto”, orienta.

Como conversar com filhos sobre separação

A separação, além de toda a burocracia financeira e legal, também é um grande desgaste emocional. Lidar com os filhos nesse período muitas vezes é o maior desafio. De acordo com a psicóloga, a forma de  conversar sobre separação com os filhos vai depender necessariamente da idade e da relação que é estabelecida na família.

Mas, de forma geral, Raquel diz que a melhor alternativa é tratar o momento com naturalidade, sinceridade e fornecer muita segurança. “O mais importante é que o filho entenda que quem está separando é a mãe e o pai, entre si, e não dele. Então, é essencial não envolvê-lo em brigas e conversas que não lhe interessam, como pensão ou divisão de bens”, aconselha.

Na hora da conversa efetiva, quando combinados serão estabelecidos, a profissional recomenda um diálogo franco. “Primeiro é preciso explicar: ´Papai e mamãe não serão mais casados, cada um vai morar em uma casa´. E, depois, mostrar o lado positivo disso, ressaltando que agora ele poderá ter dois quartos ou receber visitas do pai ou da mãe sempre que quiser ou puder”, explica.

Raquel ainda reforça a necessidade de deixar sempre claro que a criança não será abandonada. “Essas situações remetem no filho uma sensação de abandono. Ele tem dificuldade de entender até que a mãe, que é com quem ele vai morar, por exemplo, não vai embora para sempre quando sai para trabalhar ou vai ao mercado. Então, é importante no primeiro momento sempre explicar que está de saída, mas que volta, e que ele jamais será abandonado e nunca ficará sozinho”, comenta. “Se for possível, a família pode até combinar de se ver todos os dias, ou de o pai buscar na escola, como faziam antes, para que a rotina não mude bruscamente”, acrescenta.

Para os pais, a especialista recomenda o eterno exercício de lembrar que, embora não sejam mais marido e mulher, continuam sendo pai e mãe e, por isso, devem continuar sendo educadores. “O ideal é ter alguns pontos sempre alinhados para não ficar aquele jogo de ´na casa da minha mãe pode, na do meu pai, não`. Isso também soma muito para a formação do indivíduo”, recomenda.

Como saber se meu filho esta sofrendo maus tratos?

Para pais que não terminaram a relação de forma muito amigável e desconfiam que a criança possa ser vítima de maus tratos, a psicóloga diz que a observação do comportamento é essencial e pode dar respostas. Além de ficar atento à reação na escola e em outros espaços de convivência coletiva, também é essencial notar como ela está agindo no dia a dia.

“Quando a criança é pequena, ela normalmente imita o que fazem com ela. Então, se ela está gritando muito ou batendo, pode ser um sinal de agressão”, explica Raquel, que ainda dá a dica de usar brincadeiras para obter informações. “Sente e brinque com a criança. Ela não vai verbalizar, mas pode, através das brincadeiras, trazer o que está acontecendo. Deixe-a desenhar ou encenar a família e sua rotina com bonecos. Identifique o papai, a mamãe, os irmãos, a madrasta, o padrasto e deixe-a protagonizar as ações”, recomenda.

Com os mais velhos, a psicóloga diz que é essencial estabelecer uma relação de segurança, deixando sempre claro que você é uma fonte de apoio. “Depois dos seis ou sete anos, a criança já verbaliza. Ela só não fala quando é ameaçada. Nesse caso, o diálogo é fundamental. Vale dizer, por exemplo, que conversar com a mamãe ou com o vovô é seguro, que eles estão ali para proteger e que ela pode confiar”, finaliza Raquel.