Um comercial de Dia dos Pais da marca “O Boticário” publicado no YouTube (mostrado acima) recebeu uma onda de “descurtidas” e comentários racistas que geraram repercussão sobre diversidade.
Algumas pessoas alegaram que o fato de a peça publicitária ter apenas pessoas negras gera “diferenças” e “falta de representatividade”. Levamos esses argumentos para dois entrevistados.
A historiadora e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Antirracista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (AYA-GEPAR/UFRJ), Jessika Rezende Souza, e o professor de Geografia e youtuber Caio César, que fala sobre masculinidade negra e outras questões que envolvem seu cotidiano como homem negro.
A ideia é entender como a reação negativa ao vídeo revela o racismo que existe no Brasil de maneira estrutural e que, infelizmente, parece estar distante de acabar.
Comercial de “O Boticário” com família negra: por que incomoda?
A história apresentada no comercial é bastante simples: um pai mostra de forma bem-humorada como se relaciona com os filhos, de várias idades e, de um jeito bastante leve, brinca com o fato de que “nasceu para ser pai”.
Apesar de o conceito de “família de comercial de margarina” ser exaustivamente repetido em propagandas na TV, desta vez, a representação do núcleo por pessoas negras gerou polêmica.
Negro em posição de destaque
Segundo o IBGE, mais da metade da população brasileira (54%) é de pretos ou pardos. Isso significa que a família negra do comercial é bastante parecida com a de muitos brasileiros. Por essa razão, a campanha foi vista com alegria por muita gente e mostrou como é importante a representatividade na TV.
Por outro lado, as críticas racistas na divulgação de Dia dos Pais de O Boticário dizem muito sobre o incômodo em relação ao protagonismo negro, ou seja, o negro como centro de atenção, como explica a historiadora e pesquisadora Jessika Rezende Souza. E isso vem de maneira histórica.
“Tudo acontece porque, pelo mito da democracia racial, negros e indígenas teriam apenas colaborado com a formação da sociedade. Eles participaram, até ajudaram, mas o ‘ator principal’ desse processo sempre teria sido o branco”, analisa.
“Parece que se aceita a figura do negro e do indígena, mas não como protagonistas. É o protagonismo negro no comercial que incomoda. Incomoda ver o negro fora dos papéis desprestigiados, inferiorizados, fora das imagens de pobreza, crime ou violência. Ele está ocupando o lugar que sempre foi representado na mídia por brancos”.
A historiadora explica ainda que as críticas nas redes sociais mencionam “racismo reverso”, que seria o preconceito contra pessoas brancas. No entanto, tratam-se de manifestações do mesmo racismo de sempre, aquele em que a pele negra incomoda.
A suposta falta de representatividade branca
O fato de a peça feita apenas por atores negros ter incomodado parte do público branco está mais ligado à falsa ideia de democracia racial no Brasil – ou seja, “que somos todos iguais” – do que à sensação de falta de representatividade branca.
“Dizer que esse comercial fere a igualdade de direitos é sustentado pelo mito da democracia racial, no qual o Brasil seria um país em que todas as raças conviveriam sem desigualdades e discriminações”, diz a historiadora. “Quem acredita nesse mito, entretanto, ignora os séculos de violência e horror da escravidão, seguidos do encarceramento, invisibilização e genocídio da população negra que se perpetuam até hoje”.
O que a repercussão negativa dessa propaganda (até a publicação desta matéria, eram 17 mil deslikes no vídeo) nos faz questionar é: o quanto incomoda ver uma família negra feliz?
Criticar o fato de que peça publicitária foi feita por atores negros é, ao mesmo tempo, questionar uma tentativa de equiparação de representatividade, já que quase todas as outras propagandas mostram apenas atores brancos e não são uma representação fiel da população brasileira.
A crítica é feita por “pessoas que acreditam que há um movimento de exclusão sistemática de indivíduos brancos, o que nem de longe é verdade”, pondera Caio César. “Além do mais, essas mesmas pessoas não reclamam quando assistem inúmeras propagandas só com pessoas brancas”.
Isso prova que o racismo no Brasil, infelizmente, é estrutural , por definir sistemas de hierarquias sociais e de escolhas de representação de quem pode (ou não) ser associado a uma marca de beleza como O Boticário.
“Por trás da escolha de sempre priorizar pessoas brancas como um padrão universal com que todos poderiam se identificar, estão ideias racistas que consideram a população negra incapaz de ocupar esses espaços, seja por falta de beleza, intelecto ou dignidade”, avalia Jessika.
“No Brasil, houve um processo histórico de embranquecimento da população e os traços físicos negros foram constantemente repelidos. Por isso, ter atores negros no comercial de uma marca de produtos de beleza, transmitindo naturalidade, e não exotismo e sensualidade, como acontece com figuras como a ‘mulata’ ou o ‘negão’, marca a emergência de um movimento de contestação dos padrões em que o europeu é a referência”, diz a historiadora.
É chegada a hora de criarmos (e aplaudirmos) a construção de novas representações da população brasileira, majoritariamente negra, que precisa se ver representada nas capas de revista, filmes, propagandas e mídia.
Homens negros como pais
No vídeo em que publicou sobre a repercussão do comercial, o geógrafo Caio César destacou que a discussão também se dá pelo fato de o homem negro ter sido apresentado de maneira muito diferente do que estamos acostumados a ver na mídia.
“Boa parte do nosso imaginário coletivo é pautada pelas construções sociais feitas, também, pelos veículos de mídia. A ideia que se tem sobre homens negros e, mais especificamente sobre pais negros, é a ausência. Uma imagem sempre ligada à falta de afetividade, abandono, insubmissão e falta de responsabilidade”, disse, em entrevista ao VIX.
“Então, criar novas narrativas, que são a realidade de muita gente, ajuda a desmistificar esses estereótipos.”
O que diz a marca “O Boticário”
Ao VIX, “O Boticário” enviou um posicionamento que conta por que optou por fazer o vídeo e uma breve visão sobre a polêmica gerada.
“A campanha de Dia dos Pais do Boticário tem o propósito de exaltar com bom humor a importância da figura paterna por meio de tentativas divertidas que os pais fazem para acertar na criação dos filhos.
Essa irreverência é comum nos filmes da marca, assim como são a diversidade e a inclusão.
Não é de hoje que O Boticário trilha esse caminho de retratar a diversidade étnica que torna nosso País tão rico e especial, e isso transparece não apenas nesta, mas também em campanhas anteriores que demonstram as relações interpessoais verdadeiras.
O Boticário se pauta pelo respeito a todas as pessoas e deseja que, muito em breve, questões como essa não gerem mais polêmicas”.
Em suas redes sociais, a marca publicou ainda esse curto vídeo:
https://instagram.com/p/Bl36DlGHH56/
Empoderamento negro
- 5 lições de Tais e Lázaro sobre criar filhos em um mundo nem sempre justo
- “Meu cabelo não é liso e eu sou preta”: Elis dá lição contra racismo
- Esta é a única dermatologista para peles negras do Brasil: história de vida