Artista em todos os sentidos, pintora, escultora, terapeuta, investigadora das experiência físicas e emocionais humanas, Lygia nasceu em Belo Horizonte, em 1920. Como toda mulher mineira, estudou numa escola tradicional e, a contragosto de seus pais, foi se interessando pela arte. Em 1947, foi para o Rio de Janeiro e, sob orientação de Roberto Burle Marx, iniciou o seu caminho artístico. Cinco anos mais tarde, viajou para Paris e lá estudou com Fernand Léger, o mesmo artista que influenciou definitivamente a obra de Tarsila do Amaral, Dobrinsky e Arpad Szenes. No ano seguinte, expôs em Paris e no Ministério de Educação e Saúde, no Rio de Janeiro.
A década de 50, no Brasil, foi uma época de grandes transformações sociais, políticas, econômicas e culturais cujo lema principal era a criação de uma “nova modernidade”. Uma década crucial para o surgimento de movimentos renovadores nas artes. O governo de Juscelino Kubitschek, cujo lema era “50 anos em 5”, tinha como finalidade modernizar o Brasil, através da industrialização de base e a afirmação de uma sociedade de consumo. A TV já era transmitida regularmente, a pílula anticoncepcional já não era mais surpresa, surgiam os discos long-play e já se ouvia falar no “cérebro eletrônico”. Foi nesse momento que o Brasil se tornou urbano e desenvolvimentista e, para isso, tinha que se tornar internacional e tecnológico, para dialogar de frente com esse mundo novo.
No campo da arte, esse diálogo foi essencial para a formação de uma nova mentalidade e todas as áreas – música, literatura, cinema e a fotografia – buscavam o melhor de si. Para citar alguns exemplos de como a década foi decisiva para nós, lembramos que foi nesse período que os museus de Arte Moderna do Rio e São Paulo foram inaugurados, surgiu a Companhia Vera Cruz de Cinema, aconteceu a I Bienal de Arte de São Paulo, onde pela primeira vez o Brasil fez uma exposição de arte com efetiva repercussão internacional que trazia, para o público e para os artistas locais, o que de mais contemporâneo se realizava no exterior, ao mesmo tempo em que ressaltava a nossa própria modernidade, através de Oscar Niemeyer. Esse é o momento histórico em que Lygia Clark e outros artistas brasileiros como Geraldo de Barros, Aloísio Carvão, Waldemar Cordeiro, Hélio Oiticica, entre outros, vão, no final de 1956, realizar a primeira Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). A exposição, como era de se esperar, repercutiu nos meios artísticos e intelectuais da capital paulista.
A eclosão do movimento concreto, porém, vai ocorrer quando a mostra é levada para o Rio de Janeiro e montada no saguão do MEC, entre 4 e 11 de fevereiro de 57, transformando-se no acontecimento mais importante da Cidade Maravilhosa. Fizemos esse parênteses para mostrar como o nascimento da obra de Lygia Clark representou também o nascimento de uma nova consciência de ser artista no Brasil. Enquanto esteve integrada ao neoconcretismo, a artista só irá pintar em branco e preto, em tinta industrial. A primeira grande revolução proposta por Lygia se dará a partir de 58, quando desdobrará a sua pintura em articulações tridimensionais, chamadas por ela de “Casulos, Trepantes e Bichos”. Pela primeira vez, o espectador será fundamental na obra de arte, pois esses objetos convidavam as mãos a tocar, manipular e descobrir as infinitas formas que poderiam alcançar.
A segunda e definitiva revolução acontecerá em meados década de 60, quando a artista volta para a poética do corpo, criando situações onde o público estimularia os sentidos. Desse momento, nascem as máscaras e luvas, cadernos bolhas e um infinidade de objetos sensoriais que, a cada exposição ou oficina da artista, transformavam totalmente as pessoas. Eis um testemunho: “Deitada no chão, olhos vendados, alvoroço de corpos anônimos agitando-se em torno de mim; não sei o que pode vir a se passar. Perda total de referências, apreensão, desassossego. Estou entregue. Pedaços de corpos sem imagem destacam-se, ganham autonomia e começam a agir sobre mim: bocas anônimas abrigam carretéis de máquina de costura, cujas linhas lambuzadas de saliva são ruidosamente desenroladas por mãos igualmente anônimas, para em seguida depositá-las sobre meu corpo. Coberta pouco a pouco, dos pés à cabeça por um emaranhado de linhas, composição improvisada de bocas e mãos que me cercam, vou perdendo o medo de diluir a imagem de meu corpo, diluir meu rosto, minha forma, me diluir: começo a ser este emaranhado-baba. O som dos carretéis girando nas bocas parou. As mãos agora se embrenham nessa espécie de molde úmido e quente que me envolve para retirá-lo de mim; umas, mais nervosas, arrancam tufos; outras erguem fios com a ponta dos dedos como se temessem esgarçá-los e assim vai até que nada mais reste. Meus olhos são desvendados. Volto ao mundo visível. No fluxo do emaranhado-baba plasmou-se um novo corpo, um novo rosto, um novo eu.”
De 1970 a 75 reside em Paris. Como professora na Sorbonne, propõe exercícios de sensibilização, buscando a expressão gestual de conteúdos reprimidos e a liberação da imaginação criativa. No período de 1978 a 85, assume que a sua arte tem um forte aspecto terapêutico e passa a utilizar os objetos relacionais na cura de doentes mentais. O corpo de Lygia Clark faleceu no Rio de Janeiro, em 1988, mas sua alma ainda está pulsando na arte brasileira.