Como essa mãe encontrou, adotou e mudou a vida de 4 irmãos vítimas de maus tratos

Eu acho que muitas pessoas são capazes de amar incondicionalmente. E eu acredito que esse amor é capaz de transformar. É capaz de transformar uma criança em um filho, é capaz de transformar uma criança doente e traumatizada em uma criança amada e amorosa. A gente precisa praticar o exercício de amar o outro porque ele é um ser humano, e não porque é sangue do seu sangue”. Talvez essa seja a frase que melhor resuma a emocionante história de Ligia Sommers, uma empresária paulistana que há 17 anos, motivada pelo mais genuíno amor, adotou e mudou completamente a vida de quatro crianças vítimas de tortura.

Hoje, seus quatro filhos têm entre 20 e 23 anos e ela os descreve como pessoas felizes e amorosas. Mas, certamente a integridade desses indivíduos está completamente relacionada à capacidade de amar dessa mãe, que se propôs a abrir mão da espera por um bebê para criar filhos mais velhos, aceitou adotar quatro irmãos de uma vez e, acima de tudo, abraçou a responsabilidade de cuidar de quatro indivíduos vítimas das atitudes mais cruéis e traumatizantes pelas quais uma criança pode passar.

Adotar: a visão de uma nova possibilidade

Shutterstock

A fila de  adoção no Brasil é muito grande. Os números mostram que a maioria das famílias deseja bebês do sexo feminino e brancas. As preferências ainda incluem filhos únicos ou, no máximo, duplas. Os critérios, somados, excluem a possibilidade de crianças mais velhas sonharem com uma família. Ligia, no entanto, tem uma história que vai na contramão do comum e hoje ela leva sua história como bandeira. “Eu não faço apologia à adoção e nem critico que as pessoas tenham critérios ou limites porque é uma decisão muito complexa e delicada. Ter um filho deficiente, por exemplo, não é fácil e a gente precisa saber o que consegue e quer aguentar. Mas, se nesse processo alguém quiser olhar para uma criança maior, o que eu digo é que existem muitas vantagens nisso. Você consegue criar empatia com aquilo que ela já é, já consegue saber do que ela gosta, se tem alguma característica parecida com alguém da família. Meus filhos só precisaram ser estimulados como qualquer criança precisa. Olhe para uma criança mais velha que você pode encontrar o seu filho”.

O percurso de Ligia mostra que novas possibilidades podem ser convites para grandes histórias.

A história da família Sommers

Como eles se encontraram

Após de ter tido dificuldade para engravidar do ex-marido, Ligia, já separada, deu entrada no processo de adoção. Loira de olhos azuis, ela buscava uma filha que se parecesse com ela. No entanto, durante o processo, a empresária conheceu a assistente social Beatriz, que não só acompanhou seu processo, mas mudou o rumo dele. Hoje, Ligia a chama de “fadinha”.

“Eu queria um bebê. Mas, ela me perguntou se eu não sonhava com uma menininha que parecesse comigo e eu disse que era exatamente isso o que eu queria. Logo em seguida, ela disse que, se eu aceitasse uma filha de 5 anos, ela já tinha uma em mente. ‘Mas, não é apenas uma. São duas. Elas são gêmeas’, ela me disse”.

Enquanto pensava na possibilidade, Ligia recebeu a notícia de que, na verdade, tratavam-se de quatro irmãos, duas meninas e dois meninos. Apesar de solteira, ela ira adotar as crianças junto com o ex-marido e, após fazerem contas, chegaram à conclusão de que teriam condições financeiras para criar os quatro.

Antes de responder sim à assistente, no entanto, Ligia pediu para conhecer as crianças. Mas, sem que elas soubessem da possibilidade de adoção.

Nesse momento da história, os pontos começam a se cruzar e até para os mais céticos fica difícil não acreditar em destino. A assistente social sugeriu que o encontro à distância acontecesse em uma missa realizada pelo orfanato. Nela, as crianças mais velhas estariampresentes.

Acompanhada de sua mãe, a empresária observou as duas meninas de longe. “Eu não tinha certeza se queria adotar quatro crianças. Mas, fui com fé de que eu receberia um sinal indicando quem deveria ser meu filho. Eu acreditei muito nisso”.

Foi em meio a quase 200 pessoas que Ligia recebeu o sinal que esperava. “Em determinado momento, o padre chamou algumas crianças para que elas dividissem um pedaço de pão com quem quisessem. Uma das gêmeas estava nesse grupo. Mas, diferente das outros escolhidos, ela não dividiu com ninguém. Depois de muito tempo parada, ela veio até mim e me deu um pedaço. Eu sai de lá certa de que esse era o sinal que eu tinha pedido”.

Convicta de que adotaria as quatro crianças, além de toda a dificuldade que essa decisão implica, Ligia ainda teve que enfrentar preconceitos e descrença de muitas pessoas. “Quando você adota dois irmãos, todo mundo acha que você é um anjo do céu. Quando eu contava para as pessoas que seria a primeira pessoa no Brasil a adotar quatro, me chamavam de louca, diziam que eu não ia conseguir, me contavam histórias terríveis”.


tirinha-cinza.jpg

Se terminasse por aqui, a história da família Sommers já seria emocionante e a coragem de Lígia digna de reconhecimento. Mas, o desfecho feliz demorou a chegar – e envolveu muita dor. “Minhas filhas já estavam liberadas para a adoção. Mas, os meninos ainda não. Os pais estavam há quase dois anos brigando na justiça pela guarda deles”.

Os quatro filhos tinham sido retirados da família biológica por maus tratos e tortura. “Meus filhos foram queimados e ficavam amarrados. Depois da denúncia, eles foram encontrados pela polícia dentro de um quarto pequeno e escuro, com comida dentro de latas velhas colocadas no chão de terra batida. No mesmo lugar estava uma cachorra que tinha acabado de dar cria. Estavam todos com marca de queimadura, de maus tratos. Como eles não falavam, o freio da língua era colado. A pele tinha alergias e brotoejas”.

O mais novo, que na época da denúncia tinha um ano, era o que se encontrava na situação mais desesperadora. “O meu filho menor ficou amarrado em um carrinho desde que nasceu e foi agredido pelo pai com uma machadada na testa. Ele chegou ao orfanato em coma por desnutrição”.

Briga pela adoção

Quando já estava com as meninas em casa (na época, elas tinham cerca de 5 anos), Ligia temia pelos meninos (de 2 e 3 anos), que aguardavam a decisão do juiz em um orfanato. “O meu filho do meio era o único que mantinha vínculo familiar com os irmãos. Por isso, ele sentiu muita falta das meninas e decidiu que queria morrer. Ele só dizia ‘tenho falta das…’ e dizia o nome delas. Depois, parou de falar e comer”.

Em desespero, a mãe recorreu a um amigo da faculdade que, por sorte ou pelo destino, conseguiu na primeira tentativa encontrar o juiz responsável pelo caso. “O juiz, depois ficar sabendo da história toda, despachou o processo no mesmo dia, mantendo a decisão da primeira instância”. As meninas chegaram em outubro e, três meses depois, em janeiro, os irmãos estavam juntos com a sua nova família.

Como o amor incondicional superou traumas

Arte Bolsa de Mulher

“Quando os dois meninos chegaram em casa, as meninas já estavam acostumadas com a rotina”, conta Ligia. Segundo a mãe, elas tiveram de aprender a falar, se limpar, etc., pois nunca haviam sido ensinadas. “Mas, naquele final de semana parece que elas regrediram tudo o que tinham evoluído. Esqueceram como pentear os cabelos e tomar banho e até pararam de falar. Nesse dia, eu sentei no chão e comecei a chorar de desespero. Tive a sensação de que tudo tinha dado errado. Nisso, o meu filho do meio chegou perto de mim, me olhou e disse: ‘mamãe, vamos começar de novo?'” Ali tive certeza que eu poderia começar de novo quantas vezes fosse preciso”.

Arte Bolsa de Mulher

Ligia usou algumas táticas para conseguir integrar a família e relembra alguns momentos muito importantes que, em sua concepção, mostram a necessidade que as crianças sentiam de renascer em outra família. “Todos quiseram passar pelo processo de nascer de novo. Um foi quando estávamos deitados na cama e ele entrou de baixo da coberta e pediu para fazer de conta que estava nascendo de mim; o outro quis sair de baixo da mesa, sendo puxado por mim; as outras quiseram mamar na mamadeira. Isso aconteceu muitas e muitas vezes e aprofundou nosso vínculo”.

Arte Bolsa de Mulher

Além disso, a mãe ainda fazia terapias constantes para ajudar as crianças a superarem os traumas. “Um dia o menino do meio me disse que o coração dele estava preto de tristeza. Então, toda noite antes de dormir eu fazia sessões de cromo e aromaterapia com meditação. Falava que estava caindo uma chuva de ouro que lavava todo mundo por dentro, como se estivesse tirando toda a terra que existia no coração, levando a sujeira embora e deixando o coração brilhante”.

Arte Bolsa de Mulher

Ainda na fase de adaptação, as crianças foram dando respostas que mostravam a Ligia dia a dia a grandiosidade da sua atitude. “Em uma dessas meditações uma das minhas filhas me perguntou se eu lembrava que ela tinha dividido o pão comigo na igreja. Eu respondi que lembrava e comecei a ficar assustada. Então, ela me perguntou se eu sabia o porquê de ela ter dividido comigo. Eu fiquei muda e pensando: ‘O que vai acontecer agora?’. ‘Eu olhei nos seus olhos e vi que você era a minha mãe’, ela disse. Meu anjo da guarda me deu o sinal certo aquele dia e me deu essas situações de presente”.

Uma família como qualquer outra

Depois do processo de adaptação, Liga conta que os filhos cresceram como em qualquer família, fizeram faculdade e encontraram parceiros. “Foi tudo igual como é para outras mães. Na adolescência, deram o trabalho que todo adolescente dá, acharam que eu era uma imbecil. Mas, sempre fui muito rígida. Meus filhos não se envolveram com droga e nem tiveram nenhum problema sério”.

O filho mais novo de Ligia talvez seja o que mais tenha sofrido fisicamente e isso lhe trouxe grandes sequelas – e exigiu atenção redobrada da mãe. “O meu quarto filho é doente. Mas ele não nasceu doente, ele foi agredido e, por isso, tem uma lesão cerebral frontal que afetou o controle de seus impulsos e a sua sensação de dor”, conta, referindo-se ao golpe de machado que a criança levou do pai biológico. O menino, diagnosticado com hiperatividade e problemas de convivência social, vive em uma clínica especializada, onde recebe visitas da família.

“Meus filhos são pessoas muito amorosas e, acima de tudo, são muito gratos. Foi o reconhecimento e a gratidão que ajudarão eles a superaram todos os traumas”, diz Ligia.

O livro “O caminho das cores”, escrito por ela durante essa trajetória e lançando apenas em 2015, traz os acontecimentos da família com detalhes. A renda arrecadada com a venda da publicação é toda destinada à instituição onde o filho mais novo vive atualmente.

*As idades não são precisas e os nomes são ocultados para que não haja identificação direta e nem exposição desnecessária da família