O fantasma da frustração

Da mesma forma que somos, senão os únicos, ao menos os principais responsáveis pela nossa felicidade, também o somos pela nossa infelicidade. Para viver, sonhar e idealizar é instintivo e fundamental, mesmo que em algumas situações façamos isso com uma equivocada certeza sobre a nossa capacidade de atingir metas estabelecidas, à nossa maneira. Nesses casos, a vontade de ser é tanta que acabamos deixando vazar expectativa pelas frestas, tornando pantanoso o caminho que separa o real do ideal. É aí que chega a frustração, em mais uma de suas muitas aparições pelo decorrer da vida humana e que, se não for colocada rapidamente para jogar a nosso favor, pode, por não ser do presente e nem do passado, comprometer seriamente o futuro.

Carolina Ferreira é hoje musicoterapeuta mas, durante quase dez anos, viveu de uma possibilidade impossível. “Eu achava que ia ser cantora. Minha irmã dois anos mais velha é, nós cantávamos juntas desde criança, estudamos música. Ela se mudou pro Rio e eu fiquei em São Paulo fazendo teste, correndo atrás, me dedicando. Mas era tudo um inferno porque eu não cantava bem. Aliás, cantava mal”, ressalta ela. Carolina lembra que não conseguia imaginar outra vida senão a dos palcos e estúdios e que, mesmo com o punho doendo de tanto socar ponta de faca, se sentia injustiçada. “Fazia milhões de testes e não passava em nenhum. Na faculdade de música ignorava todas as propostas que apareciam se não fossem para o trabalho de cantora. Como eu não conseguia nada, minha vida foi ficando engessada. Felizmente, meus amigos e minha família perceberam o problema e começaram a me esclarecer que eu estava tornando meu horizonte cada vez mais restrito. Foi aí que eu comecei a entender que meu problema era excesso de expectativa”, revela. Depois de mais dois anos perdida, sem saber se casava ou comprava uma bicicleta, Carolina chegou ao trabalho que a realiza hoje. “Fui tomando contato com musicoterapia pela faculdade. Quando percebi já estava suprindo minhas carências de cantora que eu queria ser nos grupos em que eu trabalhava, ajudando na comunicação deles, na expressão. E descobrindo a minha função”, conta.

No campo dos relacionamentos, o duelo entre real e ideal costuma ser demolidor, como confirmam a arquiteta Cristina Sobreira e seus muitos príncipes encantados com prazos de validade vencidos. “Teve uma época na minha vida em que eu conhecia um cara e apostava todas as fichas nele, quase cegamente. Naquela primeira fase de sedução, ficava sonhando sempre que tinha achado o homem perfeito, que eu ia sair do buraco. Acontecia que imaginava o cara de um jeito que ele não era e, como eu acabava me apaixonando por esse que não existia, ia me decepcionando terrivelmente, com o tempo”, lembra. Passada essa fase de desengano, Cristina, então, resolveu que homem nenhum prestava e que, se quisesse ser feliz, teria de ser solteira. “Passei a descartar quase todos os caras até que conheci um namorado com quem eu fiquei dois anos. Ele foi encantador comigo, extremamente sedutor e eu não resisti”, conta a arquiteta, que confessa, entretanto, sofrer até hoje com seu instinto de idealização exacerbado. “Muitas vezes ainda me pego esperando coisas das pessoas que eu não tinha motivo para exigir”, assume.

A psicóloga Marlúcia Pessoa explica que se manter imune à frustração é praticamente impossível. Mas o encontro de um obstáculo no caminho da realização de um desejo pode ser uma ótima oportunidade de aprendizado e crescimento. “A expectativa começa para muitos de nós como algo difuso que vai se tornando cada vez mais objetivo de acordo com o grau de probabilidade que ela tem de se concretizar. E a gente chega a essa probabilidade pela autoconfiança adquirida nas nossas experiências acumuladas. Por exemplo, um grande jogador de futebol, que já venceu muitas vezes, não se permite ter dúvidas sobre o resultado do próximo jogo. É uma expectativa fechada. Se ele perde, a frustração é imensa porque, quanto maior é nosso modelo perfeccionista, maior a sensação de culpa”, comenta ela. Idealizar e criar modelos, no entanto, é primordial para qualquer crescimento. Portanto, nada de se contentar com pouco: é preciso, sim, estar com o bom-senso sempre ligado e de pés bem firmes no chão para que esse processo surta efeitos positivos. “Muita gente chega a distorcer a percepção da realidade quando se dá conta de que ela não corresponde completamente às suas expectativas. No entanto, desistir é dar uma solução definitiva demais para um problema apenas temporário. Se permitir errar e mudar é a melhor maneira de conviver com nossas decepções”, conclui ela.