Sou mais eu

Ela tem 1,77m, 59Kg, a pele alva, os cabelos loiros, lisíssimos, corpinho esculpido na academia e vive num espaço um pouco incômodo: o imaginário feminino. Estamos falando da mulher-padrão, aquela cuja imagem é difundida como ideal nas capas de revista, nos comerciais de iogurte que facilitam o trânsito intestinal, nos filmes de Hollywood, nas passarelas de moda. Para onde quer que a gente olhe, ela está lá, fazendo questão de mostrar o quanto é mais bonita e realizada com o espelho do que as meras mortais, mas que não se chateia em absoluto se for copiada. Pelo contrário, para ela é até bom que se proceda assim. Mas, e para as mulheres do mundo real que não tiveram a “bênção” de nascer moldadas por esse nosso volúvel padrão de beleza? Para muitas, essa relação é uma infernal corrida de gatas e ratas. Mas, para outras, não se trata de uma convivência incômoda. É, na verdade, uma chance de reafirmar a diversidade e mostrar que a beleza está em todo lugar.

Ana Cláudia Torreano tem 29 anos, é pediatra, mora sozinha num simpático apartamento próprio na zona sul do Rio e terminou com o namorado de três anos e meio um pouco antes do último Natal. Sabe por quê? Ciúmes dele. “Ele tinha muita insegurança, achava que os homens eram loucos por mim, que me olhavam nos lugares, que me abordavam. Nunca o traí, sempre fiz questão de deixar bem claro que ele era único na minha vida. Mas ele vivia dizendo que sofria muito por namorar mulher bonita”, conta. Mas antes que se imagine uma Gisele Bündchen examinando nenéns e causando torcicolo em marmanjos, é bom dizer que Ana Cláudia mede 1,75m e pesa 74Kg. “Não existo magra, não é meu biotipo. E não me acho feia, absolutamente. Sou bem cuidada, faço natação e caminhada, estou sempre cheirosa e adoro me vestir bem. Sou terrivelmente vaidosa”, conta ela. Os amigos são unânimes em reconhecer o sex-appeal da moça. “Ela chega nos lugares e arrasa. Sei de muito homem que trocaria três modeletes por uma Ana Cláudia”, entrega uma colega de ambulatório.

Nossa pediatra confirma que nunca teve mesmo problema com os homens e muito menos com o espelho. “Acho que isso vem da minha mãe, que tem o corpo igual ao meu. Ela estava sempre linda, se arrumando, se enfeitando, com gosto de ver no espelho. Nem na adolescência tive problemas. Via meninas gordinhas da minha idade com a vida social e a auto-estima arrasadas, enquanto muitos meninos vinham atrás de mim. A diferença é que já tinha satisfação com a minha imagem, eu já era o que eu queria ser”, lembra. Para Ana, a criação e a difusão de padrões de beleza fazem parte da nossa sociedade de consumo. Cabe a nós não deixar que eles nos oprimam. “Não somos todas bonecas Barbie que saímos da fábrica todas iguais. Pelo menos, não ainda”, preocupa-se ela.

Outra que aposta no diferencial natural da sua beleza é a professora Kátia Alencar. Sua exuberante e sensual cabeleira crespa desfila com o orgulho de quem nunca foi apresentada a chapinhas, formóis e escovas. É a sua marca registrada. “Vejo as mulheres escravas do alisamento, fazendo sacrilégios e forçando barras por algo que já transcende o gosto pessoal, virou falta de personalidade. É baixar a cabeça para algo que a gente não sabe nem se fica bonito”, diz ela. Adepta de faixas, prendedores e outros mil enfeites, Kátia ressalta as qualidades estéticas herdadas nos genes. “Acho meus caracóis muito mais versáteis que aqueles lisos de boneca. Posso prender de vários jeitos, inventar coisas. Fora que combinam comigo, com a minha pele, com meu jeito. Eles não estão aí por acaso, a natureza é sábia e entende tudo de estética”, afirma ela.

Conhecer a si mesmo é, ao que tudo indica, o caminho certo para gostar do que se vê e, assim, descobrir a própria beleza. A cosmetóloga Sonia Corazza diz, em seu livro “Beleza Inteligente” (Editora Madras, 2001), que aqueles que se julgam melhores por terem, teoricamente, a imagem eleita da beleza estão agarradas a um conceito passageiro, pois juventude e carinha bonita não são valores perenes. “É só olhando para nós mesmas com atenção, procurando conhecer mais sobre a nossa pele, cabelo e corpo, que poderemos explorar o melhor em cada uma, perpetuando esta nossa beleza, tão individual, como uma impressão digital”, comenta. O que não quer dizer que o ideal seja se entregar à ação da natureza. “Se os cuidados diários com a saúde e a adoção de uma rotina de vida e trato pessoal não forem adotados, essa compreensão não existe”, garante.

Neste começo de século, a opinião pública parece ensaiar um amadurecimento destes conceitos. Prova disso é a crescente tendência de valorização da beleza “real” da mulher nas campanhas de publicidade. A gerente de marketing Patrícia Aversi, da marca de cosméticos e higiene pessoal Dove, que aposta na estratégia, conta que uma pesquisa realizada pela empresa em 2004 com 3.200 mulheres de dez países trouxeram dados alarmantes sobre a auto-imagem feminina. “Um deles assusta, apenas 2% das mulheres nestes países se consideravam belas. Os números foram decisivos para aprofundarmos o nosso trabalho no sentido de valorização da beleza de cada mulher”, diz ela. Para Patrícia, iniciativas públicas com esse objetivo podem fazer com que novas gerações cresçam com uma visão diferente da beleza, chegando à idade adulta mais satisfeitas com o espelho.

Quanto maior e menos flexível o ideal de beleza, maior o número de frustrações e maior a possibilidade da auto-estima cair por terra. E sabemos que, sem ela, tudo fica muito difícil. “A massificação da supermulher bonita faz com que a mulher ‘normal’ se reduza em relação a esse mito. Então, esse tipo de sugestão psicológica pode se tornar um perigo se a mulher aceitá-la e resolver ser igual a uma outra mulher”, garante o psicólogo Marcio Rocha. O segredo para encontrar o próprio padrão de beleza é respeitar e valorizar as suas diferenças. Assim, elas ficam bem perto de serem sinônimos de qualidade.