“Ficava parada como um cadáver e chorava, enquanto ele me estuprava todos os dias”

por | jun 30, 2016 | Empoderamento

Atenção: essa é uma história real e foi publicada de forma fiel ao relato da vítima. As palavras utilizadas podem ser fortes e abordar atos sexuais e de violência. 

É um tanto difícil para mim. Poucas pessoas sabem dessa parte da minha história, e os que sabem, sabem muito superficialmente. Mas preciso contar e vou até o fim nesse desabafo.

Cresci em uma família muito pobre. Minha mãe era solteira e me deixou na casa de parentes para que pudesse ir embora para outra cidade com o pai do meu irmão, foram formar uma nova família, que não me incluía. Fiquei morando de favor desde os oito anos, hora na casa da minha avó, hora na casa de um tio, hora na casa de uma prima. Onde me cabia, eu por ali ficava, até que minha presença começasse a incomodar e eu juntasse as minhas trouxinhas e partisse para a casa de outro parente.

Quando fiz 15 anos conheci um rapaz de 20, que morava sozinho, era independente, bem resolvido, e logo me pediu em namoro. Dois anos depois estávamos morando juntos.

Ela era o típico bad boy, tinha problemas com a família, era todo revoltadinho e saiu de casa para viver de acordo com as suas próprias regras. Eu, uma adolescente normal, com espinhas na cara, uma vontade enorme de ter o meu “lar” e apaixonada, vi nele um super-herói, que me tiraria daquela vida sofrida e seria meu príncipe encantado.

Não éramos ricos, mas tínhamos uma vida razoável, eu tinha acabado de terminar o ensino médio e trabalhava em um comércio local. Ele não tinha nem o ensino fundamental, mas era um pintor de paredes muito requisitado na cidade.

Ele sempre foi muito possessivo, escolhia as minhas roupas, controlava as minhas saídas e escolhia até o emprego onde eu trabalharia. Eu até achava bonitinho – demonstrava amor, ele justificava. Trabalhar com homens, jamais! Estudar, fazer faculdade era um sonho meu que nem sobre o cadáver dele seria permitido! Carteira de motorista era coisa de homem. Até no sexo ele era machista! Não gostava de preliminares e NUNCA fez sexo oral em mim, mas eu sempre tinha que fazê-lo.

Ele me tratava como uma boneca inflável, sempre me culpando por não conseguir fazer sexo anal com ele. Dizia que eu era uma mulher incompleta, e eu tola e apaixonada, passei a acreditar nisso. Também pudera, ele foi meu primeiro em tudo! Eu nunca tinha me deitado com outro homem antes.

Mesmo assim, fazia de tudo pra “compensar” a falta de sexo anal na nossa relação. Comprava fantasias, sugeria novas posições, até um ménage eu quase fiz só pra agradá-lo (só não rolou porque, além de tudo, ele queria que EU encontrasse outra mulher que topasse). Tudo isso para ouvir ele dizer que eu era uma vagabunda. Onde eu teria aprendido essas novas posições? Transar no carro? No motel? Nem sabia o que era, era coisa de vagabunda. Tudo o que envolvesse o MEU prazer era proibido.

Ele sempre gostou muito de beber e fumava um baseado de vez em quando. Eu nunca vi problemas nisso, até eu, muito raramente fumava “um” junto com ele pra relaxar. Mas depois de pouquíssimo tempo morando juntos ele passou da maconha para a cocaína e, na mesma velocidade, para o crack.

Nessa altura do campeonato, nós já estávamos morando em uma cidade longe da minha família, mas na casa ao lado da mãe e do pai dele. Aí sim a minha vida virou um INFERNO. Pensa em um homem machista, possessivo e drogado.

Ele levou tudo o que tínhamos de valor em casa para a boca de fumo: a TV, o DVD, o player do carro, a bateria do carro, as rodas de liga do carro, enfim, vendeu o nosso carro que na época valia R$ 7.500,00 por R$ 750,00.

E cada vez que ele tentava sair de casa, carregando os nossos bens, nós discutíamos e ele me agredia. Tenho cicatrizes nas mãos até hoje dos apertões, eu sempre tinha que inventar um tombo no trabalho pra justificar o olho roxo que já tinha virado rotina.

E você me pergunta: porque eu não o abandonei no primeiro tapa?

(Daí eu respiro, seco essa lágrima que escorreu no meu rosto e continuo digitando)

Porque eu o amava, e ele me manipulava. Quando ele estava sob o efeito da droga, virava um bicho incontrolável e irreconhecível. Mas no outro dia, quando o efeito já havia passado, ele eu ficava deprimido, chorava, me pedia perdão e implorava por ajuda. E naquele instante achava que não tinha ninguém no mundo, além daquele homem que eu amava e que implorava pelo meu perdão.

Eu não tinha mais amigas, evitava o contato com as outras pessoas pra não ter que dar satisfações sobre a minha vida pessoal e todas aquelas marcas. A família dele também não colaborava, a mãe dele sabia das agressões, mas se omitia, dizia que não “metia a colher em briga de marido e mulher”. Sobre as drogas, a mãe nunca admitiu, até hoje quando questionada ela diz que o filho é alcoólatra (e só).

E dessa forma nós fomos SOBREvivendo por seis longos anos. A minha casa já não tinha aparelhos eletrônicos, apenas a geladeira e os móveis. Eu trabalhava pra pagar o aluguel somente. Passei fome, comi fubá porque não tinha nem arroz em casa. Enquanto isso ele passava 24 horas por dia em função da droga. Deixou o emprego e passou a me perseguir cada vez mais.

Ele ouvia conversas minhas com um “suposto amante” no portão de casa, enquanto ele me mantinha trancada do lado de dentro, isso mesmo, ele trancava a casa toda e escondia a chave para que eu não o traísse. Nós já não dormíamos, ele porque estava drogado, eu, porque tentava impedir as loucuras dele.

Tentei interná-lo, procurei um centro espírita, um pastor, um padre e nada.

Eu já tinha comido o pão que o diabo amassou quando me ajoelhei e pedi ajuda a Deus. Com todas a minhas forças, pedi que o livrasse daquele vício maldito. Eu já não tinha mais forças físicas (emagreci mais de 20 kg) nem estrutura emocional pra aguentar tudo aquilo. Eu iria deixá-lo.

Naquela noite, 05 de julho de 2007 eu comuniquei a ele que iria embora de casa.

E sabe o que ele fez? Me jogou no sofá com força e tirou a minha roupa, eu disse que não queria, mas ele disse que eu ainda era sua mulher e que TINHA que fazer. Eu tentei empurrá-lo mais percebi que nada adiantaria, ele era mais forte. Então eu não resisti, fiquei parada como um cadáver e chorei, quando aqueles minutos intermináveis acabassem, eu sumiria daquela casa pra sempre. Enquanto ele penetrava, as lágrimas escorriam e quando ele terminou ele gozou dentro. Ele sabia que eu não estava tomando remédio, a gente sempre teve uma relação “goza fora” quando eu não tomava o anticoncepcional. Mas ele fez de caso pensado, ele gozou dentro. E quando ele saiu de cima de mim, eu chorei copiosamente por horas e percebi que já não existia o amor que eu idealizava. Aquilo seria o fim, eu o deixaria.

No outro dia, fui trabalhar com o pensamento voltado em conseguir outro lugar pra morar, falei com uma amiga que dividia uma quitinete com outra garota, ela disse que essa outra garota iria se mudar em trinta dias. Ótimo, me arranjei, só preciso aguentar mais trinta dias.

Nos dias que se seguiram eu me senti muito mal, enjoos, mal estar e não deu outra, estava gravida.

E agora? O que fazer?

Quando dei a notícia ele não esboçou reação, a mãe dele na hora sugeriu/ordenou um aborto e eu não tive como contestar. Naquela situação uma criança só pioraria as coisas. Ela fez um preparado de ervas para mim, era conhecedora das artes ocultas e me confidenciou que já tomou esse chá diversas vezes.

Todos nos sentamos na sala e eles me olharam para ter certeza de que eu tomaria todo o chá e não lhes traria mais problemas. O meu coração se apertou e eu orei a Deus em pensamento para que fizesse o que fosse se sua vontade. Tomei em uma golada só e quase que instantaneamente senti uma vibração no meu ventre e o meu coração se apertou novamente. Me senti embriagada, o chá era um preparado de pinga com outras ervas.

Fui pra casa e chorei o resto do dia. No outro dia, minha sogra me procurou pra saber se tinha descido, mas não desceu.

Eu fiquei aliviada, eu teria o bebê, e por ele eu tocaria o céu se fosse preciso.

Continuei na minha casa durante a gravidez, e nada mudou, eu continuei apanhando, passando fome, trabalhando só pra pagar o aluguel e sendo estuprada todos os dias. Sim, porque hoje eu tenho consciência disso, sexo sem consentimento é estupro!

E eu permaneci ali, firme, com a autoestima em frangalhos, um farrapo de mulher, na esperança de que quando ele botasse os olhos no rostinho do seu filho algum milagre acontecesse.

Mas não aconteceu, meu filho nasceu e ele anestesiado pela droga nem se deu conta disso.

Até que em uma manha de inverno, ele “virado” há três noites, meu filho recém nascido dormindo comigo, ele me acordou transtornado querendo saber quem era o meu amante. Amante esse, que só existia nas paranoias dele. Ele me enforcou com tanta força que perdi os sentidos e caí. Com algum raciocínio que ainda me restava peguei o bebê, corri ate o portão e pedi socorro.

Liguei pra um tio da minha cidade, que extremamente solícito pegou o carro e foi até a minha casa. O meu marido havia saído atrás de mais droga, certo de que me encontraria quando voltasse, mas não encontrou. Quando chegou ele só encontrou a casa vazia.

Não consegui pegar as minhas coisas porque ele havia trancado a casa. Soube alguns dias depois pela minha vizinha que ele ateou fogo em todas as minhas roupas, sapatos, fotos, documentos. Mas eu não me importei, sabia que longe dele eu estava salva com meu filho.

Cheguei de volta a minha cidade e à minha humilde casa seis anos depois, com o coração despedaçado, sem vaidade, magra, com um bebê nos braços e com a roupa do corpo. Mas o alivio era tanto, tanto que fazia tempo que eu não sentia aquela paz. Fui recebida com muita alegria pela minha família, mas até hoje ninguém sabe ao certo o que aconteceu.

Durante um tempo ele ainda me ligou, fez ameaças, pediu pra voltar, me perseguiu na rua e chegou a me bater em praça publica no meio das pessoas e com o meu bebê no colo.

Mas depois de muita luta da minha família e muita “Lei Maria Da Penha” nele, ele desistiu e me deixou em paz. E eu passei a ver aquela casa humilde, da minha avó, como um palácio, onde predominava a paz e amor.

E eu fiz o que devia fazer, sacudi a poeira e retomei o curso da minha vida.

Me formei, trabalho em uma boa empresa, tenho uma casa e um carro. Tudo simples, mas MEU, comprado com o suor do meu trabalho.

Meu filho é o melhor aluno da sala. Inteligente, amoroso, educado, o maior presente que a vida me deu.

Me casei há poucos meses, e estou vivendo um sonho cor-de-rosa: um cara honesto, trabalhador, um paizão para o meu filho, bem sucedido na sua profissão, que nunca me cobrou nada, pelo contrário, só me acrescenta.

Meu ex, não vejo há 7 anos, exatamente a idade do meu filho. Meu filho não o conhece, mas tem o nome dele na certidão. Sei que um dia essa historia terá de ser contada para o meu pequeno, e talvez esse desabafo me ajude a lembrar dos detalhes. Ou não, tem feridas na alma que nunca cicatrizam.

Por que publicar esse relato?

Desde que publicamos as histórias das repórteres do Bolsa de Mulher que já foram vítimas de abuso, estamos recebendo inúmeros relatos de leitoras que passaram por diferentes tipos de violência contra a mulher. São depoimentos que mostram como esses casos são frequentes, desde a infância até a fase adulta, incluindo mulheres que estão casadas e são constantemente violentadas por seus maridos – assim como é o caso dessa vítima.

Enxergamos a importância em divulgar essas histórias que chegam a nós, com o consentimento das vítimas e sem identificá-las, para levar o debate de um tema tão importante para nossas leitoras. “Espero que, mesmo que de forma indireta, eu possa estar abrindo os olhos de pelo menos UMA mulher que esteja passando pela mesma situação”, nos disse a mulher responsável pelo desabafo acima. E é nisso que acreditamos.

A publicação deste e de outros relatos tem como objetivo conscientizar todas as mulheres vítimas de abusos, sejam eles psicológicos, físicos ou sexuais: nós não somos culpadas pelas violências das quais fomos vítimas. Além de também alertar para uma triste realidade: a maior parte dos abusos sexuais acontecem dentro de casa ou são cometidos por pessoas próximas às vítimas.

É preciso falar mais sobre o tema para sabermos que ele não está tão distante de nossa realidade como muitas vezes pensamos. Todas podemos ser vítimas. Como vamos evitar isso? Tornando essas histórias cada vez mais públicas, humanizando as vítimas e denunciando. Nos tornando conscientes dessa realidade alarmante.

Relacionamento abusivo e violência doméstica

Violência e abuso dentro de relacionamentos amorosos é um problema mais comum do que parece. Um levantamento divulgado em agosto de 2013 apontou que 56% das pessoas entrevistadas conheciam ao menos uma mulher que já sofreu agressão do marido ou namorado. O estudo da percepção da sociedade sobre violência e assassinatos de mulheres, do instituto de pesquisas Data Popular encomendado pelo Instituto Patrícia Galvão, órgão dedicado a questões femininas, ouviu 1.501 homens e mulheres maiores de 18 anos em cem municípios de todas as cinco regiões do Brasil e confirmou uma realidade cruel que atinge todas as classes sociais.

O grande problema é que nesses casos em que o agressor é o homem por quem a vítima nutre sentimentos de amor e paixão, é ainda mais difícil tomar a decisão de denunciar e procurar ajuda. Contudo, desde 2006 a Lei Maria da Penha está em vigor para incentivar a denúncia e prestar serviços de proteção à mulher, para que ela se sinta segura para agir contra o agressor. Essa lei prevê cinco tipos de agressão contra a mulher: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Como denunciar violência doméstica?

Para fazer uma denúncia, sendo você a vítima ou uma pessoa próxima a ela, é preciso ligar para a Central de Atendimento à Mulher através do número 180, que atende 24 horas por dia e garante o anonimato da vítima ou de quem procurou pela ajuda. Por esse telefone também é possível ter maiores informações sobre a Lei Maria da Penha e receber orientações de como agir, além de obter atendimento psicológico, jurídico e social.

Também é possível procurar presencialmente pela Delegacia da Mulher mais próxima de você – a ONG Maria da Penha disponibiliza uma lista de delegacias especializadas e pode ajudar. 

E você? Já foi vítima de abuso?

Falar sobre as experiências pelas quais passamos é um processo importante para aceitar o que aconteceu e também para superar. Além disso, é muito importante para ajudar outras pessoas a enfrentarem essa situação e conscientizar a população sobre o problema. Foi isso que pensamos ao decidir criar espaço no site para essas histórias.

Se você sofreu violência, ligue para a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. O número é 180. Anônimo e gratuito esse serviço cobre todo o Brasil, 24 horas por dia, 7 dias por semana, incluindo finais de semanas e feriados.

Você também pode recorrer a qualquer delegacia para registro de um boletim de ocorrência, ou, caso haja no seu município, a uma Delegacia de Defesa da Mulher. É possível, ainda, ligar para a polícia (190). Caso não se sinta segura para ficar em casa, solicite abrigo na delegacia ou Centro de Referência de Atendimento às Mulheres.

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