Bebê prematuro > Perto da morte

Tive uma gravidez tranqüila, tirando o mal estar de ter de trabalhar na revista todos os dias, um lugar em que não me sentia muito bem. Às vezes eu ia muito triste no caminho, por ter que ir para lá e conversar com pessoas com as quais não tinha o menor interesse em conversar. Tinha vontade de sair de lá. Fora isso, o resto foi super-bonito. Nadava de manhã cedo na praia, namorava, estava muito feliz.

Estava querendo ter um filho, mas ainda não tinha planejado, porque tinha acabado de casar há três meses. A gente tinha pensado em ter filho depois que aproveitasse bastante a vida, porque a gente já se conhecia na adolescência e não aproveitou na época o que deveria ter aproveitado. A gente vivia naquele paraíso, em lua-de-mel. Estava tomando pílula e mesmo com a pílula fiquei grávida. Soube depois, pela minha ginecologista, que isso é muito comum, que a pílula não dá 100% de segurança. Logo que começou a atrasar a menstruação, que vi que estava grávida, comecei a fazer todos os exames. Tudo estava normal. Ficou aquele “e agora?”. Então decidimos ter um filho logo. Queria ter um filho, embora já tivesse desistido. O desejo de ter um filho era uma coisa bem abstrata. De repente se concretizou.

Então em janeiro, com quatro meses, comecei a sentir umas coisas muito esquisitas. De repente, sem entender porquê, sentia um ódio mortal da minha mãe. Estava indo para o trabalho ou voltando e, de repente, sentia aquele ódio mortal. Me pegava dizendo a mim mesma que não ia deixá-la sequer olhar o meu filho. Segurar, jamais. E, ao mesmo tempo, achava estas idéias muito loucas. Eu parecia bem, mas todos os meses fazia exame de sangue, mas tinha muito medo dos exames. Via os resultados em pânico. Tinha medo de doenças. Vivia cercada dessas coisas. Tinha medo que acontecesse alguma coisa. Foi por isso que ele nasceu prematuro. Talvez o medo tenha me deixado tão aflita. Tinha medo de que a criança me aniquilasse profissionalmente, tinha medo de perder a liberdade, tinha medo de que nada desse certo. Acho que demorei a ter filho por medo também. Tinha medo de não poder sustentar, do dinheiro não dar. Naquele mês de março, tinha material escolar dos outros três filhos do William, a gente teve uma despesa enorme. Eu me preocupava com essas coisas.

Pedia para fazer ultra-sonografia toda hora para ver o bebê. Adorava. Até a obstetra disse que não tinha como justificar tanta ultra-sonografia. Na véspera de sentir contrações, fui fazer outra ultra-sonografia só para ver o bebê de novo. Estava tudo normal. Eu cheguei lá e estava tudo normal. O sujeito, horrível, disse que o bebê era narigudo. Esse médico tinha o nariz enorme. Ele falou isso e eu olhava a tela e só via um bebezinho chupando o dedo. Quando olhei para a cara do médico levei um susto. Vi aquele narigão. Eu pensei: “Será que o João é narigudo ou este idiota é auto-referente?”. Depois fiquei pensando que o cara devia ver todos os bebês narigudos, mas, apesar disso, saí de lá chocada. Não havia pensado nessa possibilidade do João ser feio.

No dia seguinte comecei a sentir de tarde, na revista, umas cólicas. Era uma sexta-feira e neste dia eu era a responsável pela revista, porque a diretora aqui do Rio tinha viajado e deixado a revista sob meu comando. Liguei para a obstetra. Ela me mandou tomar Buscopan para não ter contrações, mas foi uma confusão. Acabei tomando o remédio só em casa quando cheguei. Às seis da tarde estavam aumentando as contrações. Tomei um táxi e fui para casa. Tomei Buscopan, mas não parou. Passei a tomar outro remédio e parou.

No domingo ia melhorando, mas à tarde voltaram as contrações. Liguei para ela, ela disse que era melhor tomar uma medicação na veia e pediu para a gente se encontrar no hospital, para eu ter um acompanhamento mais intenso. Quando cheguei lá, ela me examinou e disse que a bolsa estava rompida e que o neném ia nascer. Entrei em pânico. Ia fazer seis meses de gravidez. Tinha 25 semanas de gestação. Eu disse: ele não pode nascer, senão ele vai morrer. Fiquei uma criança, completamente ignorante, porque quando ela falou que a bolsa tinha rompido, falei que não, que não saiu líquido nenhum. Mas a bolsa pode romper sem sair líquido, nem sangue. Eu estava crente que estava abafando, que era muito bem informada sobre gravidez, que controlava tudo, tinha a informação de todos os exames.

Toda vez que lembro da médica dizendo que o bebê ia nascer, me dá novamente vontade de chorar. Na hora pensei que ele ia morrer. Eu disse isso a ela, mas ela disse ele tinha chance de sobreviver. Eu disse que ele era muito pequenininho e que ele ia morrer, mas ela me convenceu de que ele poderia sobreviver. Então eu dei um salto. Fui para outra órbita. Achei que ia dar tudo certo. Não entrei mais em pânico. Nem senti o tempo passar. Tinha que esperar o remédio para não ter contrações parar de fazer efeito. Aí voltariam as contrações para o bebê nascer. Depois eu soube que ela não queria fazer cesariana porque achava que o bebê ia morrer. Ela chamou o William lá fora e disse que havia 5% de chances do bebê sobreviver, mas que eu não podia saber, porque aí é que não ia sobreviver mesmo. O William ficou em pânico, segurando minha mão, com um sorriso confiante, plácido, um sorriso meigo que ele tem desde criança. Vejo nas fotos, um sorriso específico que me dá a maior paz. Eu sei que de 21 horas até as 4 da manhã, quando o João nasceu, pareceu que passaram só 15 minutos. O tempo na minha cabeça foi de 15 minutos. Me deu um branco.

Não avisamos a ninguém. O William ficou do meu lado, segurando a minha mão. Ele já não se agüentava. Aí a gente foi para a sala de parto, ele do meu lado, segurando a minha mão, falando bobagens. Eu ria, nem pensei em nenhum momento que o bebê pudesse morrer. Quando ele nasceu, não doeu nada. Doeu o corte, porque a anestesia não pegou e ela teve de fazer aquele corte horrível a sangue-frio. Senti uma dor que não consigo imaginar nem que vá sentir outra vez.

Ele nasceu pelos pés. Veio o pezinho dele, as perninhas. Quando vi o tamaninho dele, comecei a chorar. Queria pegar, mas como era pequeno, frágil e magrinho. Como tinha os lábios iguais aos meus e ao do meu avô. As duas médicas da UTI perguntaram por que eu estava assim. Acho que elas queriam que eu risse, que reproduzisse aquela emoção comum. A obstetra respondeu que eu estava estressada. Comecei a chorar e o William quase desmaiou. Ele ia caindo, eles o ampararam.

Então apaguei. Me levaram para o quarto. Quando acordei, eram 6.30 da manhã. Liguei para minha mãe e disse que o bebê tinha nascido. Que tinha chance, mas era um bebê de risco, tinha uma infecção. Pedia a minha mãe para rezar, porque ele era muito pequeno. Ela começou a chorar e eu chorei também. Então caí na real do que estava acontecendo. Fui ver o bebê na UTI. Não consegui mais sair da UTI. Ele era tão pequeno e eu só podia pegar na sua mãozinha. Esse período da UTI ficou um tanto deslocado. Um vazio estranho, que eu sempre acho que já passou, que eu já esqueci de tudo. Desde que não me lembre nem fale de nada disso. Já faz mais de um ano, está tudo bem, mas se falar um pouquinho mais… Não consigo…. Foi horrível. O João ficou 100 dias exatos lá. Eu contava cada um dos dias. Nesses 100 dias, ele estava para morrer quase todos os dias. Não sei como consegui suportar tudo, mas a gente consegue. Foi uma coisa que aprendi. Achei que não conseguia viver algumas coisas. Consegue, mas você não se livra nunca mais daquele terror. Livra assim, se você não falar. Se falar, chora, chora sem parar.

Não tive pós-parto. Fiquei 100 dias de pé na UTI, em frente ao bercinho dele… Havia um banco, mas eu não podia ficar sentada num tamborete desses de botequim. É um desrespeito com a mulher. Fiquei em pé direto. Abria às 8h, fechava às 22h. Às vezes eu chegava antes das 8h, ninguém reclamava. Ficava o dia todo de pé, diante do berço do João. Falava com ele. Cantava todo dia para ele, muitas vezes por dia, músicas do Tom Jobim.

Não via o tempo passar. Quando estava lá dentro me sentia bem, porque ficava olhando para o João, vidrada. Quando via, já era noite. Não comia lá, não fazia nada. Ficava lá em pé. No dia em que ele nasceu só liguei para minha mãe e para a Mag, para que ela fizesse o mapa astral do João, às 7 da manhã. Não falei com mais ninguém. A Mag, com aquele jeitinho dela, foi maravilhosa, toda doce. Disse que tudo que ele tivesse viria de mim. Ela disse que eu cantasse para ele, porque ele ia se sensibilizar com isso. E eu passava o dia inteiro em pé e cantando baixinho Tom Jobim, porque tinha acabado de escrever o livro sobre o Tom. Cantava especialmente “Eu sei que vou te amar”, que era uma música que mal eu começava, já começava a chorar. Ficava segurando a mãozinha dele, porque não podia pegá-lo no colo.

Uma UTI de neo-natal é um terror. Além de você estar vivendo tudo aquilo, você tem que se esforçar para não ver as tragédias que estão à sua volta. As crianças que morrem, as mães que choram sem parar. Segui o conselho não sei de quem de não olhar para o lado. No começo era uma louca. Não olhava para ninguém, não conversava com outras mães. Elas faziam chacrinha, iam lanchar e eu estava fora disso tudo. Só ficava olhando para o João, para os aparelhos. Tirava o leite na bomba de madrugada, de quatro em quatro horas, mas isso não parecia ser mãe. Um mês depois, quando ele riu, tive pela primeira vez a sensação se ser mãe. Foi num desses dias em que ele tinha melhorado. Porque ele melhorava um milésimo, e eu ficava num estado total de alegria. No dia seguinte, piorava novamente. Eu aprendi lá o significado da palavra lábil. Você está ótimo agora e daqui a um segundo você está péssimo e morre. Os médicos falam assim o tempo todo: “Ele é muito lábil”. E eu ficava com aquela palavra na cabeça. Lábil.

Eu fiquei então habituada a ouvir os alarmes de freqüência cardíaca e respiratória sem cair dura. O William chegou a um ponto de não conseguir mais ouvir o disparar dos alarmes. O João estava muito bem, mas, se começavam a apitar os alarmes, ele ficava tonto, passava mal, tinha de sair da UTI. E os alarmes disparavam de cinco em cinco minutos! Muita gente não conseguia ficar lá dentro. Eu pensava que se eu não ficasse lá junto do João, seria pior para ele. Achava que o ajudava a viver. E ajudava mesmo. Hoje sabe-se que é a mãe que faz o bebê viver, mesmo que todos ali estivessem igualmente assistidos por aparelhos, médicos e enfermeiras. As mães que não conseguiam ficar, porque a barra era pesada ou porque tinham outros filhos pequenos, perdiam os bebês.

Assim eu ficava lá o tempo todo, brigando e enchendo o saco de todo mundo como uma maluca. Hoje fico rindo das loucuras que fiz. Eu não dei tchau, não deixei bilhete. Não consegui. Eu detestei aquilo ali, não tinha nada de bom para dizer. Mas tenho saudades da diretora, que se apavorou, que eu azucrinei, mas a amei como se ele fosse minha mãe ali, meu anjo protetor. Depois de muita briga, depois de chamá-la diariamente de sádica e de megera, era a única pessoa que tinha o poder de me acalmar, de me explicar o que estava acontecendo, de me animar. Ela me deu a maior segurança no momento mais difícil da minha vida. Eu nem soube dizer isto a ela, mas acho que talvez ela saiba.

Trechos do livro “Maternidade: Que delícia! Que sufoco!” Editora Objetiva

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