Minha irmã gosta de peru no Natal. Como não moramos na mesma cidade, ela já deixa “o desejo de peru” veementemente expresso para o jantar do dia 24, ou para o almoço do dia 25, antecipadamente. Cabe a mim satisfazê-lo.
Para mim, tanto faz. Não gosto nem desgosto, muito pelo contrário. Acho um pernil, por exemplo, muito mais interessante.
Só há uma coisa que me intriga no peru: alguém já tentou comprar um peru NÃO temperado na época do Natal? É virtualmente impossível. Já tentei em todos os lugares. Num mercado meio fora do circuito, fui informada de que era preciso encomendar com antecedência e aguardar um telefonema de confirmação, que podia ocorrer ou não, visto que a demanda nessa época era muito grande.
– Mas é só um que a senhora quer?
– É. Só um.
– Ah. Aí, é mais difícil.
– Por quê? Devia ser mais fácil…
– É que as granjas já estão comprometidas com estabelecimentos que fazem encomendas maiores. Os banqueteiros, restaurantes e buffets que vendem ceias prontas compram praticamente toda a produção nesta época.
– Sei…
– No começo do ano, a senhora consegue fácil.
– Obrigada. No começo do ano eu não preciso.
Já pensei em comprar meu peru sem tempero em setembro ou outubro, mas onde, em nome de Deus, eu guardaria a ave até o bendito dia 24? No freezer é que não cabe. No congelador da geladeira, nem pensar. Só se eu alugar um espaço num freezer de terceiros ou comprar o bicho vivo e criar em casa, com as crianças, até o Natal. Mas experiências do passado* me dizem que não seria uma boa idéia…
Não sei se a cozinheira se atrasou ou se teve uma crise de compaixão, mas o fato é que o peru não foi abatido a tempo e a bebedeira descambou para uma diarréia daquelas
Para piorar, os perus temperados parecem receber o tempero desde o ovo. Acho que no momento em que a perua bota o ovo, os caras do frigorífico começam a injetar o tempero na clara e na gema e já deixam as cascas imersas naquela marinada, desde o primeiro dia. Talvez, até alimentem a perua, mãe do ovo, com ração temperada.
Já fiz tudo o que o fabricante manda não fazer de jeito nenhum: lavar, jogar água, temperar de outra forma… em vão. Já tentei vinha d’alhos, de véspera, dentro e fora da geladeira, com champanhe, com cerveja… nada parece ser capaz de tirar aquele gosto de “tempero pronto” do penoso. Não importa o que se faça, não importam os acompanhamentos, o peru temperado fica SEMPRE com o mesmo gosto. Acho frustrante…
Um ano, me rebelei. Não fiz peru. Minha irmã ficou tão triste que me arrependi na hora. Disse que Natal sem peru não era Natal. Que ela vinha láááááááá do Rio do Janeiro especialmente para comer o peru, que vinha sonhando com o danado desde o avião, chegava aqui… e nada… sucumbi. Mas não acho a menor graça.
O passado me condena
*Não lembro exatamente o ano, mas sei que foi em Recife, em um fim de ano. Ficou combinado de passarmos o Natal na casa de uma cunhada da minha tia (que também era prima por parte de mãe, que também era sobrinha da minha avó… essas coisas de família grande). Linda casa, jardim enorme, superinfra-estrutura e, como estrela da efeméride, um peru, comprado vivo, para ser preparado comme il fault para a ceia.
Ah, essas cozinheiras puristas…
O fato é que os dias foram passando e o peru se mantinha alegremente, alimentado com milho e ração, sacudindo as penas pelo jardim, sem saber da sorte que o aguardava. Fomos uma ou duas vezes na casa dessa prima “visitar” o peru, que era visto com compaixão por uns e com cobiça por outros, que já o visualizavam sobre a mesa, dourado, pernas pudicamente amarradas, enfeitado e recheado com farofa úmida.
Em tempos de hormônios e de perus congelados e temperados (que, não importa o quanto se lave, tempere ou o que se faça, o bicho permanece SEMPRE com o mesmo gosto), a perspectiva de termos um peru praticamente virgem, criado da maneira mais natural possível, era muito auspiciosa.
Reza a lenda que o grande segredo do sucesso é embriagar o peru algum tempo antes do abate. Dizem que bêbado, o peru fica descontraído e nem liga quando um par de mãos torcem-lhe o pescoço, resultando numa carne sensivelmente mais macia e “relaxada”.
Pois bem. Na manhã do dia 22 ou 23, os presentes se dedicaram a encher o peru de cachaça. Causou furor e risos incontroláveis ver o bicho cambaleando pelo jardim, caindo sobre os arbustos, dando o maior vexame.
O desfecho da história é meio nebuloso. Vou contar como soube: não sei se a cozinheira se atrasou ou se teve uma crise de compaixão, mas o fato é que o peru não foi abatido a tempo e a bebedeira descambou para uma diarréia daquelas. E o medo de abater um peru “doente” para a ceia? E o medo do bicho ter pego algum vírus, alguma “Gripe do Peru”, desconhecida na época, e botar todos os convivas na cama? O tempo foi passando, o dia se aproximando e, segundo consta, o peru foi abatido a seco mesmo, de qualquer jeito, por decurso de prazo.
À mesa, na noite de 24 de dezembro, nada de excepcional. Aliás, foi até frustrante. Bem no meio do cenário, ocupando lugar de honra, jazia o corpo inerte do peru, todo enfeitado conforme regia o protocolo, todo dourado como havia de ser.
O gosto? Nada que tenha me marcado. Lembro que a farofa ficou seca (meu pai reclamou baixinho com a minha mãe). Agora, refletindo à luz de vinte e tantos anos e mais de duas dezenas de perus depois, não teria sido mais fácil comprar um bicho previamente morto e, em vez do porre de cachaça, assá-lo coberto com papel alumínio, tirado apenas nos últimos quarenta e cinco minutos para dourar? No entanto, tivesse sido assim, eu não teria essa história para partilhar. É a vida…