Tudo começa com a atração. Ela chega devagar, mas, de repente, quando a gente menos espera, explode um turbilhão de emoções: basta o desconhecido maravilhoso do ponto de ônibus chegar ou o deus grego do escritório (aquele com quem nunca tivemos a chance de ultrapassar as barreiras do “bom dia”, “até logo”) esboçar um breve aceno. Achá-lo lindo, vá lá, mas imaginá-lo como o futuro pai dos nossos filhos pode parecer um pouco exagerado. No entanto, no amor platônico, cultivado secretamente nas fantasias e na imaginação, nada é exagero. A gente fica igual a Bela Adormecida – esperando o beijo do príncipe encantado na angústia de saber se o grande dia vai, ou não, chegar.
Acalentar os sonhos com uma determinada pessoa da qual gostaríamos de nos aproximar e por quem gostaríamos de sermos amadas é uma experiência comum na vida de qualquer pessoa
Bela Adormecida, príncipe encantado… E onde fica Platão nessa história? Está na expressão – amor “platônico” -, mas até aí, nada. Bom, na verdade foi ele, Platão, filósofo grego que viveu por volta de 425 a.C., quem deu origem ao termo. “O amor é, de fato, um tema central da filosofia platônica. Ele perpassa toda a obra do filósofo, mas existem dois diálogos que tratam especificamente desse sentimento: Banquete e Fedro“, explica o pesquisador de filosofia Antiga Remo Mannarino Filho. Segundo ele, em ambos os textos existem elementos que podem ter sido a origem do que hoje entendemos como amor platônico, um amor distanciado, impossível ou mesmo casto – sexo, só nas fantasias! “Mas é preciso ter em mente que o termo é usado, hoje, de forma um tanto distorcida ou no mínimo muito simplificada”, avisa.
Amor a la grega
Só para se ter uma idéia de como a coisa é mesmo mais complexa, os gregos têm mais de um termo para definir o amor! No caso do platônico, estamos lidando com o eros. “É o desejo ou amor corriqueiro que sentimos por uma pessoa, mas que, segundo Platão, deve ser o ponto de partida para um caminho ascendente de contemplação intelectual ou espiritual”, explica Remo. Ele diz que é como ir subindo vários degraus: “A função do desejo e do amor na alma humana é impulsionar em direção ao alto, em direção à contemplação da beleza em si mesma, eterna e incorruptível”.
No fim das contas, o que Platão afirma é que o amor é, sim, uma loucura e um arrebatamento, mas não deve servir apenas à satisfação dos desejos inferiores da alma. “Ele pode e deve envolver jogos eróticos – carícias, beijos, toques – mas tudo isso no campo das idéias, sem chegar à consumação sexual”, esclarece o pesquisador.
Já sentiu algo parecido? Pois é, Juliana Matias*, produtora, já. “Acho que sou a rainha dos amores platônicos”, brinca Juliana, que há mais de dez anos curte um amor assim. “Tudo começou num show. Me apaixonei pelo cara da banda, a gente virou amigo, ele casou, tem filha, mas sempre me contentei em olhar só de longe”, conta Juliana, que comemora: “Fui até devidamente apresentada à família dele como a fã número um da banda”.
Ela conta que em todo show está lá na frente, babando. “É o máximo! Ele toca a minha música predileta, fico feliz e vou para casa cantarolando. Para mim, isso basta”, garante Juliana. E ela vai além. “Já tive mil fantasias sexuais com ele, mas gosto mesmo é de ficar só olhando, suspirando, sei lá… Se encostar, perde o encanto”, ri a produtora, que já chegou até a viajar direto com a banda só para poder tirar uma casquinha do rapaz – de longe, é claro. “Dormíamos no mesmo quarto e nunca rolou nada! Ele até já disse que nunca trairia a mulher, mas que comigo abriria uma exceção. Recuei, é claro. Você deve estar me achando louca, né?”, diverte-se Juliana.
Na linha do tempo
De fato, o amor platônico sempre acompanhou o ser humano através da História. No século XII, era evocado pelos trovadores, que cantavam o chamado “amor cortês” através das cantigas de amor e das cantigas de amigo. “O amor cortês reservava à dama escolhida por um trovador como alvo de suas homenagens um lugar de destaque na sociedade por ser amada como nunca fora antes, cantada em prosa e verso. Ao trovador, o amor oferecia um enobrecimento da alma”, explica a psicóloga e psicanalista Malvine Zalcberg, autora de Amor, Paixão Feminina (Editora Campus-Elsevier).
Pois é, segundo Malvine, às vezes nós mesmas escolhemos cultivar esse tipo de amor, assim como os trovadores e como a produtora Juliana Matias, porque ele nos faz sentir bem. O amor platônico, segundo a psicóloga, faz parte de uma evolução de cada um no seu caminho para o exercício da sexualidade e do relacionamento com outras pessoas. “Nesse sentido, não deixa de ser benéfico, pois algo do processo de transformação e de novas reflexões sobre os relacionamentos humanos passa por esse tipo de enamoramento”, diz Malvine.
Ela afirma, ainda, que é altamente sedutor amar alguém em segredo, porque podemos idealizar e imaginar a relação com o outro da forma como queremos e desejamos. Por isso, “acalentar os sonhos com uma determinada pessoa da qual gostaríamos de nos aproximar e por quem gostaríamos de sermos amadas é uma experiência comum na vida de qualquer pessoa”. O amor platônico é mais comum ainda na adolescência, quando estamos passando por uma fase de amadurecimento emocional e conhecemos, eventualmente, o amor por ídolos da TV, do cinema, da música… Sem contar pelos professores!
“Já fui louca pelo meu professor de Biologia quando estava na oitava série. Hoje, morro de rir com isso e até conto a história para as minhas filhas, que, por sua vez, são loucas pelo vocalista do JotaQuest. Mas, na época, eu levava muito a sério! Fazia aulas de reforço só para encontrá-lo mais vezes durante a semana, fingia que tinha várias dúvidas, mesmo sendo muito boa na matéria”, lembra Magda Salvador*, médica. “Talvez por ele eu tenha decidido seguir carreira na área médica. Sabe-se lá como funciona essa coisa de subconsciente!”, brinca Magda.
Quando amor vira angústia
Tudo muito bonito e até engraçado, mas nem sempre é assim. Quando levado ao extremo, o amor platônico pode gerar muita angústia. Os escritores e poetas românticos dos séculos XVIII e XIX, como o inglês Lord Byron e o brasileiro Álvares de Azevedo, colocaram no papel o sofrimento por amores não correspondidos ou que quase sempre terminavam em tragédia. O pesquisador Remo Mannarino comenta a semelhança do amor platônico com o chamado amor romântico: “Os românticos podem ter buscado certa inspiração no amor platônico na medida em que davam ao sentimento um sentido místico e contemplativo”.
O poeta inglês William Blake já chegou, inclusive, a escrever que “o mundo da imaginação é o mundo da Eternidade (…). Todas as coisas, em suas Formas Eternas, estão dentro do corpo divino do Salvador, a verdadeira voz da Eternidade, a Imaginação Humana”. Uma nítida semelhança com o modo como Platão defendia a existência dos atos de amor – só nas idéias, na imaginação.
E assim, só na fantasia, Marcela Cavalcanti, assessora de imprensa, foi levando sua paixão pelo novo vizinho. “Minhas pernas ficavam bambas quando eu o via, parecia coisa de adolescente”, conta ela, que afirma ter sido sempre muito tímida quando o assunto é relacionamento amoroso. “No máximo, a gente trocava um ‘oi’ no sobe e desce do elevador ou nas proximidades do prédio”, revela. “Mas aí, no dia em que o encontrei por acaso na praia, juro, achei que fosse ter um treco, ainda mais quando descobri que ele sempre estava por lá”, lembra a assessora.
Marcela passou então a freqüentar o mesmo lugar no mesmo horário, torcendo, é claro, para que o encontro acontecesse desde o elevador. O objetivo era ir se aproximando cada vez mais, até que ele puxasse papo. Foi quando vieram as férias do meio do ano e o bonitão viajou. “Fiquei desesperada quando soube pelo porteiro que ele tinha viajado com um grupo de amigos. Comecei a sentir um ciúme absurdo, não suportava a idéia de ver – ou melhor, pensar – nele com alguma mulher a não ser eu. Sentia como se ele já fosse meu namorado, entende?”, angustia-se Marcela, que tomou a decisão de que, assim que ele voltasse, iria passar a demonstrar mais interesse e, quem sabe, até tomar alguma espécie de iniciativa.
Mas, quando o rapaz voltou, já era tarde demais. “Chegou com namorada, acredita? Parece que pressenti! Nossa, meu chão caiu, fiquei séculos sem sair com outros homens e me pegava sempre procurando neles algo que lembrasse o meu vizinho. Aos poucos, fui me recuperando, mas com muito colo das amigas!”, diz Marcela.
Se, por um lado, o amor platônico pode satisfazer às necessidades de quem ama, por outro, não satisfaz. “Depende da forma como cada um lida com o sentimento”, explica a psicóloga Malvine Zalcberg. “Principalmente hoje em dia, quando os amores se desfazem tão facilmente em prol de relações flexíveis, temporárias”, alerta a psicóloga. Ela conta que o filme Denise está chamando, de Hal Salwen (1995), explora muito bem – e com uma pitada de humor – o isolamento humano ao mostrar como um grupo de amigos só se comunica por meio de aparatos eletrônicos, sem nunca se encontrarem na realidade.
“Como esses amigos nunca têm tempo nem disponibilidade de se encontrarem, se servem da tecnologia para compartilhar segredos, explorar o amor e a perda e até mesmo tecem suas fantasias por meio de fax, pagers e e-mails. Mais platônico, impossível, e menos propiciador de verdadeiros encontros”, descreve Malvine.
Do platônico ao real
De acordo com a psicóloga Malvine Zalcberg, ficar sozinho e amar a distância é, para os homens, uma forma de proteção de sentimentos como inadequação, rejeição e medo de parecerem ridículos. Já as mulheres têm um grande receio de não serem amadas e temem a possibilidade de terem que se confrontar com isso. “Já reparou que, mesmo quando os homens lhes dizem que são amadas, ainda assim elas precisam se certificar disso e perguntam muito aos homens – aliás, quase que incessantemente – se eles realmente as amam, o quanto amam, etc?”. Pois é, é a natureza feminina, mas o que todas nós – e eles também – precisamos entender é que no amor não há garantias. “A questão, então, é não se deixar fixar em alguém ou em uma única forma de amar”, aconselha Malvine.
É preciso, segundo a psicóloga, abraçar outras maneiras de se relacionar que não exclusivamente na fantasia, na idealização do momento ou do homem “perfeitos”. Porque o perfeito não existe, é bom – e engrandecedor – aceitar as falhas. Afinal, o amor eternamente platônico leva à solidão. “Brincar com a imaginação, idealizar, fantasiar, tudo isso pode ser muito divertido. O segredo, em si, é excitante, mas deve ser algo da ordem do ‘de vez em quando’, porque se prender a amores platônicos é fugir da realidade, é perder a chance de ter relacionamentos mais gratificantes”, finaliza Malvine.
*O nome foi alterado a pedido dos entrevistados.