Um novo país: o que pode acontecer se Catalunha se separar mesmo da Espanha?

Recentemente, a comunidade autônoma da Catalunha, que hoje faz parte da Espanha, promoveu o maior referendo já realizado na região para consultar a população catalã sobre sua independência ou permanência em relação à Espanha. De acordo com o governo catalão, o resultado do pleito foi de 90% dos votos a favor da separação e 7,8% dos votos contrários – o restante votou nulo ou branco.

Logo após a divulgação dos resultados do plebiscito, o presidente catalão Carles Puigdemont afirmou que “a Catalunha ganhou o direito de ser um Estado independente” e anunciou que o parlamento catalão estaria disposto a declarar independência de forma unilateral em 48 horas.

Mas o que pode acontecer se isso realmente acontecer? E quais as chances de acontecer? A seguir, explicamos essa complexa questão e quais podem ser suas consequências. 

O que está acontecendo na Catalunha?

O referendo não é reconhecido pelo governo central espanhol, que determinou que ele nem deveria ocorrer – e este foi o estopim dos confrontos vistos no dia da votação. Policiais foram designados para impedir que seções eleitorais fossem abertas e houve diversas cenas de violência e abusos por parte deles, além de reações e manifestações mais agressivas dos separatistas.

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Registrou-se atendimento a centenas de pessoas feridas: mais de 800 manifestantes e cerca de 30 policiais. Ainda assim, participaram da consulta popular pouco mais de 2,2 milhões de pessoas, cerca de 40% do eleitorado catalão, de 5,5 milhões – segundo autoridades catalãs, cerca de 750 mil votos deixaram se ser contabilizados porque foram confiscados pela polícia espanhola.

Dois dias depois do resultado da votação, Puigdemont não confirmou a autoindependência catalã, mas reforçou que “vai agir no final desta semana ou começo da próxima”.

A situação deixa um clima de incerteza para a Catalunha e para a Espanha. O que irá acontecer com Catalunha e Espanha se o anúncio se confirmar?

Catalunha pode virar um país? O que aconteceria? 

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Dadas as regras antiseparatistas da União Europeia (UE), é bastante improvável que o bloco reconheça a região autônoma da Catalunha como um Estado nacional. O primeiro passo teria que ser uma consulta popular aceita pela Justiça da Espanha e após a validação do resultado, o novo país teria que participar de um longo processo para integrar a UE, que pode levar anos.

Reação da União Europeia

“Todos os benefícios que a Catalunha tem por fazer parte da União Europeia deixarão de existir. Os separatistas mais otimistas gostam da ideia de que a UE aceite um período de transição e que a Catalunha não precise passar pelo processo que outros países passam. Não é provável que isso aconteça”, explica Rodolfo Pereira Chagas, professor de geopolítica do curso de Relações Internacionais da Universidade Belas Artes, em entrevista ao VIX ​​​​​​. “A comunidade internacional deve seguir a decisão da UE, e o bloco não deve reconhecer a autonomia, com medo de criar um precedente em toda Europa”.

Mudanças no turismo

A primeiras consequência seria a necessidade da criação de uma Constituição, com sistema jurídico e administrativo próprio – por exemplo, se o país será presidencialista ou parlamentarista. Nestas novas leis, teria que ser definido um novo sistema para as relações diplomáticas do novo país, como regras para a concessão de vistos.

Dessa forma, o fluxo de turistas estrangeiros pode ser afetado. Ou seja, Barcelona, capital catalã, pode deixar de ser a cidade mais visitada de toda Espanha. E pode impactar inclusive os viajantes brasileiros: nosso país, assim como a comunidade internacional, não deve reconhecer uma independência unilateral da Catalunha.

Problemas na economia e moeda

No caso de uma decisão unilateral, a Espanha deve impor à Catalunha algumas restrições comerciais e a mesma medida pode ser seguida pelos países da União Europeia. Imediatamente, a equilibrada economia catalã irá sofrer – desde o referendo, o valor das empresas espanholas e catalãs nas bolsas de valores caíram. 

Além disso, o novo país não poderá ter no euro sua moeda oficial. A UE é bastante rígida com as regras em relação aos países que integram a zona do euro e não deve conceder tal direito a um Estado sem reconhecimento.

Futebol: Barcelona na Inglaterra?

No futebol (ou em qualquer esporte), a seleção espanhola não poderia contar mais com atletas nascido na Catalunha, como Gerard Piqué, a não ser que reconheçam cidadania espanhola em detrimento da catalã. E corre na Europa a informação de que o Barcelona abandonaria a Liga Espanhola e poderia jogar nas ligas francesa ou inglesa.

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E o que a Espanha tem a perder?

A Catalunha tem uma população de 7,5 milhões de pessoas, aproximadamente 12% de toda Espanha. Sua ocupação territorial é equivalente a 13% de todo território espanhol.

Contudo, ela é tida como o motor da economia do país: é a região que mais produz riqueza. Representa 19% do PIB espanhol, responde por 25% de todas exportações espanholas, atrai 14% dos investimentos estrangeiros e é também a região turística mais visitada e badalada da Espanha.

Como é uma região rica, com grande parque industrial e destino turístico dos mais visitados, a saída da Catalunha pode comprometer toda economia espanhola, que está fragilizada desde a crise econômica de 2008.

Independência catalã é improvável

Por outro lado, o premiê espanhol Mariano Rajoy afirma que o Estado espanhol não reconhece a consulta popular, a considera ilegal e até acionou a Justiça para impedir que ocorresse e que desconsidera seus resultados. “Não houve um plebiscito. Não vimos nenhum tipo de consulta, mas uma mera encenação”, disse.

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“O referendo não respeita a Constituição espanhola, que determina haver uma só nação, a Espanha, ainda que reconheça outras nacionalidades”, analisa Rodolfo Chagas . “O governo catalão até pode declarar independência, até a população que votou a favor espera isso dele, mas tem que medir o caos que isso causa, do ponto de vista jurídico, político”, conclui.

Caso a Catalunha se autodeclare independente da Espanha, o mais provável é que o governo central espanhol suspenda todo tipo de autonomia catalã. E a tendência é que o plebiscito não seja reconhecido como válido também pela comunidade internacional – até o momento, apenas a Venezuela toma a votação como uma determinação popular válida.

Há receio de que a aceitação da independência catalã seja a primeira peça de um dominó que pode estimular outras unidades territoriais espanholas e europeias a agirem de mesmo modo. Na Espanha, são 17 unidades territoriais, mas três delas têm status de “nacionalidade histórica”: além da Catalunha, o País Basco e a Galícia.

O separatismo não é aceito pela Constituição da Espanha e também rejeitado pelas normas da União Europeia.

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Referendo é questionável

A decisão de tornar a Catalunha independente da Espanha não é a unanimidade que o resultado do plebiscito faz parecer. A grande massa dos eleitores que foi às urnas no domingo faz parte da parcela da população que defende o separatismo catalão.

O jornal espanhol El País publicou duas consultas populares de opinião realizadas na Catalunha sobre o tema. De acordo com a publicação, uma pesquisa encomendada pelo governo catalão revelou que 49% dos habitantes são contra a separação e 41% são favoráveis – os demais não sabem. Outra pesquisa, realizada pelo próprio jornal, informou que 61% dos catalães não consideram que esse plebiscito tenha valor legal, mas que 82% da população é a favor de que ocorra um referendo oficial em um futuro próximo.

Motivo do desejo por separação é histórico

A Catalunha nunca foi um país independente, embora tenha elementos que configurem de nação (cultura e língua próprias, por exemplo) desde a Idade Média. Era região integrada ao reino de Aragão até 1492, quando este se unificou com Castela e deu origem ao Império Espanhol.

Ao longo de pouco mais de dois séculos, a Catalunha alternou momentos de integração e resistência ao império, com governo autônomo. O momento de maior tensão foi a emergência da Guerra de Sucessão espanhola, que culminou com a derrota catalã e a “queda de Barcelona”, em 11 de setembro de 1714 – até hoje, a data é lembrada como Dia da Catalunha em homenagem à luta contra a monarquia.

No século 20, a Catalunha reconquistara algum nível de autonomia política dentro da Espanha, mas durou até 1936. Esta data marcou o início da Guerra Civil Espanhola, na qual o general Francisco Franco conseguiu consumar um golpe militar e implantar uma ditadura que governou o país até 1975.

O período foi especialmente duro para a Catalunha: Franco proibiu o idioma catalão e rechaçou à força qualquer projeto autonomista da região. “Ao longo do século, os Estados europeus, que são majoritariamente plurinacionais, encontraram formas democráticas de pacificar as diferenças. A Espanha foi exceção com a ditadura. Quando o regime acabou, o país promoveu um processo de democracia a toque de caixa e, como não tinha identidade nacional fortalecida, abriu espaço para que resgatassem identidades nacionais reprimidas”, contextualiza o professor de geopolítica.

Com queda da ditadura franquista nasceu a nova Constituição Espanhola, em 1978, que novamente permitia autonomia administrativa à região, nos moldes da “Generalitat”, modelo de gestão que marcou o período político pré-Franco. Desde então, alguns grupos políticos defendem e militam em prol da separação total entre Catalunha e Espanha.

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Após a crise econômica de 2008, os projetos separatistas voltaram a ganhar força – sobretudo motivados pelos problemas que a Espanha tem na economia, como a taxa de desemprego que chegou a 26% e hoje gira em torno de 17% da população. “A economia e a independência fiscal da Catalunha são fatores importantes, mas isso não mobiliza tanta gente para as ruas. A razão desse movimento está no passado catalão, nas tradições e memórias desse povo”, conclui Rodolfo.

Em 2013, os dois principais partidos catalães conseguiram organizar o primeiro referendo para ouvir a opinião pública – partidos de oposição boicotaram a votação. O resultado foi próximo ao atual: 2,3 milhões de pessoas compareceram e 80,7% se declaram a favor da independência.

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