Amigo do coração

por | jun 30, 2016 | Comportamento

Uma amiga envia algumas perguntas sobre vinho e saúde de modo a compor um roteiro de matérias que está por fazer. Selecionei algumas de suas perguntas. Algumas delas já andei respondendo, ao longo do tempo, nesse espaço. Mas não custa revisitá-las.

1) Por que os vinhos tintos vêm sendo apontados como amigos da saúde do coração?

Vamos começar do começo.

A. Os vinhos, tintos e brancos, sempre tiveram um papel central como medicina, da antiguidade até o século 18. Receitas de remédios à base de vinho foram encontradas em papiros egípcios e em plaquetas sumérias datadas de 2.200 AC. São os mais antigos documentos sobre medicina feitos pelo homem. Falamos de um período da história em que mágica, feitiçaria e religião se confundiam com medicina.

Quando a prática da medicina começou a se sistematizar, com seu começo atribuído ao grego Hipócrates (por volta de 450 AC), o vinho era recomendado como desinfetante, veículo para outros remédios, parte de uma dieta saudável.

Ele experimentava diversos vinhos de modo a descobrir o mais apropriado para diversos males, da diarréia ao parto (como facilitador do mesmo) à letargia.

O segundo médico mais famoso da antiguidade foi Galeno, que aparece no século 2 da nossa era. Estamos em plena Roma antiga, com Galeno ganhando fama ao tratar de gladiadores feridos. Ele aprendeu que o vinho era a melhor maneira de desinfetar ferimentos, aliás, repetindo o que os mais antigos já faziam.

De um modo geral, os romanos utilizavam o vinho fartamente por problemas de saúde. Seus soldados, para evitar crises de diarréia, entre outros problemas, bebiam preferentemente vinho (por mais vagabundo que fosse): a água, particularmente naqueles tempos, sempre foi muito perigosa. Não é à toa que suas tropas levassem mudas de parreiras para que os “bárbaros” as cultivassem. Era uma maneira de civilizá-los: os bárbaros produziam vinho e vendiam-no para os romanos. O matagal à beira dos rios, que servia para emboscadas, era substituído por vinhedos, bem mais abertos. Ninguém se machucava, todos lucravam.

As atitudes dos médicos com relação ao vinho começaram a mudar na última metade do século 19, embora a bebida continuasse a ser utilizada, por exemplo, para esterilizar a água em epidemias de cólera. Vinhos mais fortes, como os do Porto, ainda eram receitados para a recuperação de doentes.

Mas nesse século o alcoolismo foi definido como doença, as sociedades, ligas pró-abstinência proliferaram, inclusive com apoio de médicos – o que levou a uma reavaliação do papel do vinho na dieta e na saúde.

B. Chegamos ao século 20: na década de 1970 e início dos anos 80, beber vinho, assim como qualquer outra forma de consumo de álcool, estava sob a mira de médicos e autoridades da área da saúde.

O vinho contém álcool e álcool é tóxico, contribuindo para danos sérios no fígado, no cérebro e para todos os acidentes que conhecemos. Ele também marca presença em muitas espécies de cânceres, desordens do sangue, da pressão arterial, infecções na pele, aumento na taxa de fertilidade etc.

Ao mesmo tempo, porém, percebia-se que o vinho, se tomado com moderação (de uma a três taças por dia) podia resultar em efeitos sociais benéficos. As pessoas relaxavam, ficavam mais amenas, mais urbanas.

Algumas pesquisas começavam a demonstrar que os bebedores moderados tinham uma taxa de mortalidade menor do que a turma do funil e mesmo do que os abstêmios totais. Hoje, se tem como absolutamente certo que beber com moderação pode ser benéfico para a saúde.

C. Os vinhos tintos como amigos da saúde do coração.

As doenças do coração são ainda as que mais matam no Ocidente. A deposição de placas de colesterol nas artérias coronarianas impede que o músculo cardíaco receba a quantidade necessária de oxigênio, resultando nas dores da angina e nos ataques cardíacos. Eles acontecem quando coágulos de sangue bloqueiam por completo aquelas pequenas artérias, cortando o fornecimento de oxigênio.

A turma do funil, os bebedores obstinados desenvolvem níveis altos de colesterol, bem como altas taxas de pressão sanguínea, que enfraquecem o músculo cardíaco, aumentando anormal e fatalmente os ritmos do coração.

Sob esse quadro de fatalidades, é natural que não apenas os movimentos pró-temperança, como também os médicos acreditassem que mesmo um moderado consumo de álcool causasse estragos.

Contudo, hoje temos um grande volume de evidências comprovando que quem bebe moderadamente está entre os que seguramente não desenvolverão doenças cardíacas. Estão bem mais seguros do que os abstêmios e os bebedores contumazes. E, mais: o vinho aparece entre todas essas evidências como a mais benéfica das bebidas alcoólicas. Por quê?

O sangue transporta o colesterol LDL (low-density lipoprotein – lipoproteína de baixa densidade) e o HDL (high-density lipoprotein – lipoproteína de alta densidade). O LDL é o bandido, o que forma as plaquetas resultando no bloqueio das artérias. O HDL é o mocinho: ele limpa as artérias.

O consumo moderado de álcool melhora o equilíbrio entre bandido e mocinho. Os coágulos de sangue são compostos de plaquetas – pequenos fragmentos de células velhas que flutuam inofensivamente na corrente até que quimicamente são levadas e aglomerar-se num emaranhado de fios de fibrina, um tipo de proteína, parte essencial do coágulo sanguíneo.

O álcool possui dois efeitos anticoagulantes que fazem com que o sangue coagule no lugar errado. Faz com que as plaquetas se tornem menos pegajosas, mais maleáveis. E reduz o nível de fibrinas disponíveis para formar um coágulo.

Parte do benefício do vinho, parece, vem da forma pela qual é consumido. Seu efeito anticoagulante dura pouco menos de 24 horas – o que pode explicar a razão de um ataque cardíaco ser improvável ou reduzido na manhã do dia seguinte ao das taças bebidas. Até duas taças do bebedor de vinho promovem um nível seguro de álcool. Ao contrário, o tradicional porre de um bebedor de cerveja ou de destilado num sábado à noite vai deixá-lo temporariamente com alta taxa de anticoagulante (e com um grande risco de hemorragias e enfarto). Muito álcool leva muito tempo para que o fígado o metabolize. Nosso porrista não está apenas sujeito a ressacas, mas a um ataque cardíaco, graças ao alto nível de anticoagulante circulando. O álcool, contudo, não é o único componente de significância cardiovascular para o vinho.

O vinho tinto, dez vezes mais que o branco, é rico em fenóis – elementos químicos com grandes propriedades antioxidantes. O mais famoso desses fenóis é o resveratrol. Ele inibe a reação através da qual o LDL é formado. E, mais: impede as reações que tornam as plaquetas mais pegajosas e, com isso, promover coágulos e bloquear as artérias.

O vinho tinto ou o suco da uva preta faz aumentar o nível de resveratrol no sangue e a sua atividade antioxidante. O resveratrol faz uma significativa contribuição para os efeitos do vinho, em particular o tinto, na proteção cardíaca, o que pode explicar o mais famoso paradoxo no mundo dos vinhos.

O Paradoxo Francês, uma expressão criada nos Estados Unidos em 1991, quando o médico R. Curtis Ellison, de Boston, ganhou fama pela pesquisa que explica o fato dos franceses, com uma dieta riquíssima em gorduras, fumantes inveterados, considerando exercício físico uma excentricidade, apresentarem baixas taxas de doenças coronarianas – ao contrário dos atléticos (na época) norte-americanos, envolvidos em estilos de vida mais saudáveis. Parte da defesa orgânica dos franceses era devida ao consumo regular de vinhos.

Mas a verdade é que por trás da pesquisa do Dr. Ellison estava outro médico, o francês Serge Renaud: ele é considerado o pai do conceito que explica o Paradoxo Francês. Quando garoto, o Dr. Renaud vivia numa vinícola em Bordeaux, com seus avós e bisavós – todos bebiam quantidades moderadas de vinho diariamente e todos chegaram a idades entre 80 e 90 anos. Renaud concluiu que vinho em doses pequenas jamais poderia fazer mal. Seu trabalho perseguiu essa tese.

Em 1991, os dois, Renaud e Ellison, foram entrevistados pelo programa “60 Minutos”, da CBS, num segmento chamado “O Paradoxo Francês”. Depois da entrevista, o consumo de vinho tinto quadruplicou em todo o mundo.

2) As substâncias presentes na bebida possuem efeitos terapêuticos sobre o coração? Quais são essas substâncias e seus efeitos?

Grande parte da resposta está acima. Mas o vinho contém as vitaminas A, B e C, além de 13 minerais essenciais à nossa vida. O resveratrol é apenas um dos elementos com ação comprovadamente positiva em terapias para o coração.

Ele é um fenol ou polifenol – parte de um grande grupo de componentes químicos, que inclui muitos pigmentos naturais de cor (as antocianinas da uva e de sua casca preta), os taninos e os componentes de sabor.

Além dessas qualidades, um pesquisador da Harvard Medical School, David Sinclair, descobriu que o resveratrol ativa enzimas conhecidas por estender o tempo de vida de levedos. Ele pode estimular enzimas semelhantes nas células humanas e, acredita o pesquisador, dar a elas tempo suficiente para curar-se de algum problema e evitar a morte. O Dr. Sinclair está agora testando sua tese em ratos.

3) Uma taça de vinho tinto por dia é suficiente?

Isso vai depender de cada pessoa. Mundialmente, moderação quer dizer de uma a duas taças para mulheres ou de uma a três taças para homens – diariamente. O conselho de um médico também é fundamental. Às vezes, uma pessoa sabe beber moderadamente, mas tem um problema específico no fígado, onde o álcool não é bem vindo.

4) Pessoas com problemas de saúde – principalmente cardíacos – podem adotar essa prática?

Em 1995, o professor Morten Gronbaek, um epidemiologista dinamarquês, pesquisou os padrões de consumo de álcool de 13.285 homens e mulheres entre 30 e 79 anos. Estudos anteriores diziam que o consumo de álcool aumentava o risco de ataques cardíacos. Mas o Dr. Morten descobriu que esse não era o caso do vinho. Três a cinco taças diárias reduziam os riscos de doenças e ataques cardíacos em 60%. Contudo, ao beber-se apenas ou dois drinques de destilados diariamente aumentava-se esses riscos em 16%, que aumentavam para 35% com três ou cinco drinques por dia. O dinamarquês descobriu também que o vinho conseguia reduzir o risco de câncer no pulmão. Assim, já é corriqueiro que médicos hoje, em todo o mundo, recomendem ou façam vista grossa para o consumo de vinhos. Desde que moderadamente.

Existe na Inglaterra, inclusive, um hospital em que o vinho é receita obrigatória. As enfermeiras do Great Western Hospital, em Swindon, servem aos pacientes duas taças diárias. É claro que o esquema adotado pelo diretor do hospital, o cirurgião cardíaco William McCrea, vai assustar alguns médicos. O Dr. McCrea, porém, diz que os antioxidantes no vinho tinto ajudam a prevenir coágulos e a reduzir o colesterol bandido. O esquema lá é beber o vinho tinto como se fosse o chá das cinco.

5) Com que idade se pode começar a tomar essa taça diária de vinho?

Vai depender dos costumes (e leis) do país. Na Itália e França se bebe vinho desde criancinha. É o exemplo da família do Dr. Serge Renaud. Todos bebem desde cedo, moderadamente.

André Debray, 107 anos, e Marguerite, 101, celebraram agora seu 81o aniversário de casamento, em sua casa, na pequena vila de Chateauroux, interior da França. O segredo de uma longa e feliz vida a dois? Beber uma taça de vinho no almoço todos os dias. Isso, evitar brigas e comer bem. “Nunca brigamos e vivemos juntos a tanto tempo que temos os mesmos gostos”, revela Marguerite.

Logo, o problema é só começar sem se importar quando. E não acabar mais.

Falta dizer que boa parte dessas respostas retirei de “The Oxford Companion to Wine”, segunda edição, minha bíblia devidamente editada por Jancis Robinson, minha guru.

Se as amigas tiverem mais perguntas é só clicar para o Bolsa ou para a Soninha no soniamelier@terra.com.br