Caso Perdido

Saiu de casa semi-desfeita, com aquele jeito meio descabelado de ser. Levava na bolsa a escova, o batom e o espelho. Abotoou o casaco no elevador, amarrou o sapato no lobby. Xiii! Esquecera o cachecol. Já era. Estava atrasada. Lá fora, o frio de 3 graus centígrados a lembrou: também deixara as luvas de lã em cima da cama. E as chaves!! Conferiu no bolso. Ufa. As chaves, não esquecera.

Tinha 25 minutos pra atravessar a cidade. Vá lá, Manhattan não era assim tão larga. Mas as avenidas faziam cada passo valer por meio. Compriiiiiidas! Podia pegar um táxi, mas vá achar táxi em dia de chuva. Chuva? Putz. Não pegara o guarda-chuva. Mas será o pé do cabrito? Onde andava com a cabeça ? Parou numa esquina e comprou uma sombrinha amarela. Horrorosa. Odiava cores chamativas. Todavia desgostava ainda mais de cabelos molhados grudando na testa. E estava raining cats and dogs. Por que será que no Brasil chovem canivetes e aqui nos EUA, gatos e cachorros? Ficou sem resposta. Não tinha tempo para brincadeiras, precisava se concentrar na pauta da reunião. Hum, cheiro de nuts. Faltavam cinco quadras e 11 minutos. Pela lógica, não chegaria a tempo. Ai meu Deus.

Lá vinha um táxi amarelo da cor da sombrinha. Horroroso. Jamais teria um carro assim. Jamais teria um carro. Não em NY. Bem, lá vinha o tal do táxi amarelo da cor da sombrinha horrorosa. Fez sinal. Sabia que ouviria desaforos do motorista por rodar só cinco quadras. Stress à vista. Saco! Já se preparava mentalmente: se fosse indiano, diria que adora a costa leste da Índia, belíssima. Estivera em Goa, ano passado. Quem sabe acalmava os ânimos ? Mas e se fosse paquistanês ? Nunca fora ao Paquistão. Precisava renovar a assinatura da Geográfica Universal. Urgente. Precisava anotar na agenda que precisava renovar a assinatura da Geográfica Universal. Agora. Senão, esqueceria. Começou a chover mais forte. Que mão-de-obra abrir a bolsa segurando o guarda-chuva. Cadê minha caneta? Malditas reuniões, sempre alguém rouba a caneta da gente. O táxi estava trancado num engarrafamento que se formou entre dois cruzamentos, mas o tempo rodava livre. Tic, tac. Achou uma Bic. O que era mesmo que queria anotar na agenda? Estava tão em cima da hora!

Alguém entrou no táxi que era dela. Ei!, esbravejou. Malditos novaiorquinos, não respeitam ninguém! Então o cara não viu que ela estava com o braço levantado? Jerk. Continuou caminhando assim pela beirinha da calçada, com o braço esticado em sinal de pare aqui seu motorista. Andava a passos largos, desviando das poças d’água. Olhava pra frente, olhava pra trás. Nenhum cab à vista. Deus costumava ser pai. Bons tempos aqueles. Na esquina da vinte e três com a quinta, parou. O sinal para pedestres estava piscando como a dizer vai, não vai. Esses sinais mais atrapalham do que ajudam. Ela, que já era indecisa, nunca sabia se atravessava ou esperava. Estava atrasadíssima. Devia arriscar. Esperou. Difícil, a vida no primeiro mundo, vou te contar!

Arregalou os olhos. Não era possível: lá estava um outdoor com seu nome escrito em letras garrafais: Virgin. De Virgínia. Seria obra de algum admirador secreto? Se fosse, tinha esquecido as duas últimas letras. Tsc, tsc, estava pra ver o dia que encontraria um americano que escrevesse seu nome certo. Se bem que a foto da placa também não era dela, mais parecia a Celine Dion naquelas propagandas de descontos de CD. Golpe barato. Era bom que não conhecesse o tipinho mesmo. Um desaforo usarem seu nome assim, em vão. A reunião, a reunião.

Mais três quadras e estaria lá, não muito sã, mas com certeza salva. Tinha desistido do táxi. Não por que achasse que não valia mais a pena, mas porque estava com o braço cansado mesmo. E deixá-lo assim, esticado pra fora, só fez embaçar o seu relógio, que não era a prova d’água. Droga. Era falsificado, mas parecia verdadeiro. Comprara em Chinatown. Tão bonito! Como se apegava fácil às coisas, não? Se bem que agora tinha um desculpa pra chegar atrasada: não enxergava os ponteiros. Parou na sinaleira outra vez.

Uma onda surgiu sem que desse tempo de sair correndo. Do nada. Surgiu do nada. Quando viu estava ensopada, dos pés à cabeça. Filho da p… Não adiantava xingar em português. Estava marrom de sujeira e roxa de raiva. Deviam tirar a carteira desses animais do volante. “Jerk!!”, gritou. Adorava a palavra jerk. Soava ultra-ofensiva. Ihhh.. Devia ter enrolado a pasta dos projetos em um saco plástico. Agora estava empapada. Uma eca. Tudo por causa daquele jerk. Jerk, jerk, JERK!

Pensou em ligar avisando que já estava chegando. Mas se já estava chegando, pra que ligar avisando? Faltava uma quadrinha só. Estava cansada, botando os bofes pra fora. Esgadelhada. Bem que Manhattan podia ter um serviço tele-táxi. Até Porto Alegre tinha! Saudades da terrinha… Chegou; sexto andar, sala de reuniões. Fechada? O que está acontecendo, dona Mônica? A reunião foi transferida, não lhe avisaram? Não. Seria ao final da tarde. Atrasara o vôo do diretor de compras da filial de Chicago. Por causa da greve da American Airlines, parece. Diz que estão um caos os aeroportos. É mesmo? A senhora vê que coisa… Imprevistos acontecem, né? Uma pena, mas não tinha problema não; ela voltaria ao final da tarde. A Sra. tem uma caneta aí? Posso ficar com ela? Obrigada. Deus ainda era pai.