Chacal, o guerrilheiro cultural > Viver de poesia

Bolsa de Mulher – Eu conheço uma poesia que diz assim: “Poesia não compra comida, mas como viver sem poesia?”. Dá pra viver de poesia?

Chacal – Tem uma poesia de um amigo meu, que não sei se é esse, que dizia: “Poesia não compra sapato, mas como andar sem poesia”? É do Emanuel Marinho, do grupo Pô Ética! Mas, poesia, é difícil você viver dela pura e exclusivamente porque o Brasil é um país de pouca leitura, as pessoas não têm o hábito de ler, mas também porque é um formato difícil. Muito mais difícil do que a prosa, então, em quase todos os lugares do mundo, a poesia não tem uma vendagem muito grande, é uma coisa para raros. Agora, você pode viver como letrista. Você vive da sua poesia, da sua letra e têm pessoas que vivem bem: o Ronaldo Bastos, Aldir Blanc, poetas e letristas, basicamente.

BM – Você também faz letras?

C – Muito poucas, na minha vida fiz poucas. Não com continuidade, mas faço. Às vezes musicam meus poemas e algumas vezes faço letras, samba, trabalho com a Fernanda Abreu e tudo o mais.

BM – Fausto Fawcett?

C – O Fausto também é poeta e letrista, eu trabalho com quem é músico. Mas eu acho que você viver de poesia está muito além de você viver simplesmente do teu poema. Viver de poesia pra mim é isso que eu faço: fazer o CEP 20000, produzir eventos relacionados à poesia, é, enfim, viver de uma forma criativa, criando espaços, não só para a poesia, mas também para outras artes, editando revistas, enfim, viver criativamente. Eu acho que a mesma coisa que me faz escrever um poema, me faz produzir uma miscelânea lá na Cinelândia, um evento que eu produzo também, que tem que pensar os roteiros. Tudo isso é viver poeticamente.

BM – Vamos falar do CEP 20000. Como você teve a idéia e qual o seu objetivo?

C – A minha idéia era sempre abrir um espaço, quer dizer, cavar um espaço para mim mesmo, pra poder falar minhas poesias. Eu sempre gostei muito de falar meus poemas. É como se a minha poesia se realizasse mais com a oralidade do que com a palavra escrita. Essa coloquialidade… e você falando o poema, você descobre também outras coisas. Performance, a minha poesia é uma performance. E aí, eu já estava vendo uma segunda ou terceira geração de poetas no início dos anos 90, quando fizemos o “Terças-Feiras Poéticas”. Então, eu estava com 39 anos e conhecendo uma garotada com 17, 18 anos que estava começando a fazer poesia e que freqüentava o Baixo Gávea, o Posto 9 e tal. Aí me juntei com o Guilherme Zarvos, ele tinha uns contatos dentro do Rio Arte e a Secretaria Municipal de Cultura, e então levamos o projeto pro presidente do Rio Arte naquela época e começamos a fazer, em agosto de 1990. Fizemos 11 anos este ano.

BM – E como estão os poetas atuais? Você os vê com alegria? A rapaziada que está chegando está trazendo uma bagagem, está tentando mudar alguma coisa, ou retomando a atitude do contra a normalidade, assim como você tentou?

C – Atualmente, está muito difícil você dizer o que é contra e o que é a favor porque, realmente, com essa coisa globalizada, neoliberal, não sei se é bem por aí, mas hoje pode tudo, quer dizer, você tem pouquíssimas condições de se criar um acontecimento, criar uma coisa nova. Naquele período, quando a gente apareceu, era uma ditadura militar. Então, qualquer coisa que fosse contra aparecia porque era tudo tão censurado, tão limitado, policiado, que qualquer coisa que rompesse aquele padrão ali aparecia. E a gente apareceu bem naquele período porque era uma urgência: as pessoas precisavam ouvir determinadas coisas que não tinham estado na mídia tradicional. Hoje em dia tudo pode, essa minha geração, por exemplo, foi muito absorvida pela própria Rede Globo. Os poetas da minha geração, muitos foram trabalhar na Globo, escrever roteiros, fazer miniséries, estas coisas. Você tem o Casseta & Planeta dentro da TV Globo, que é uma coisa iconoclasta, irreverente e é permitido. O Jabor também… Sabe, a linguagem mudou, o que era o Pasquim naquele início de anos 70, hoje está incorporado na mídia, o palavrão, tudo está liberado. Então a coisa ficou meio flat hoje em dia, ela é uma coisa em que tudo pode e nada acontece. O grande problema é você fazer um acontecimento. Eu estava lendo o Jabor esses dias e ele falou que a grande façanha do Bin Laden foi ter criado um acontecimento, porque hoje em dia nada acontece. Eu vejo isso: a gente vai lançar um livro, vai lançar um CD, aquilo ali escorre no meio de um monte de CD’s e livros e de peças que estão em cartaz. Então nada acontece e aí eu acho que trabalhar com poesia hoje é muito diferente do que fazer o mesmo trabalho naquela época em que nós éramos meio que uns talibãs, uns muçulmanos no meio de um lugar altamente cercado por Marines e tudo mais, na época do regime militar. Agora, de uma forma mais concreta, eu acho que têm focos diferentes. Naquele período, dos anos 70, todo mundo era contracultura, era irreverente, era suicida, morreram muitos naquela época. Era um período muito mais dramático. Hoje em dia já tem muita gente que voltou a escrever sonetos, começou a pensar novamente na forma da poesia. Não quer mais falar do cotidiano, ela quer ter uma estrutura, quer ter uma forma. Então, você tem vários poetas, tem o Alexey Bueno, o Tavito Azevedo, que são de áreas diferentes, mas são as duas áreas de poemas elaborados, querem falar mais da poesia, no sentido de intertexto, de ter uma referência, conhecem várias línguas, sabe? E tem a turma do CEP 20000, que está mais ligada à coisa da poesia marginal, que é o pessoal mais beat, mais do cotidiano, da sujeira dentro do poema, da performance, da poesia ao vivo, que é uma coisa muito importante: a poesia fora do livro. Isso eu acho que o CEP conseguiu resolver bem. Então é isso, você tem diversas vertentes hoje em dia: da mais suja à mais marginal, à mais elaborada, à mais clássica e todas convivem pacificamente.

BM – A imprensa te rotula como um agitador cultural. Você se sente bem com esse rótulo?

C – Eu não me importo não. Eu não me importo porque eu acho que eu faço realmente isso. Uma cultura apática, uma cultura inerte como a que a gente vive, quer dizer, de pseudos acontecimentos. Eu, com três mariolas e um saquinho de amendoim, vou fazendo coisas que eu acho que são importantes para a cultura da cidade. O CEP 20000 é uma coisa muito importante.

BM – Inclusive já está saindo do Rio de Janeiro. O projeto “Free Zone”, que você organizou, foi para outros estados.

C – Pois é, foi pra Curitiba, Porto Alegre e São Paulo. Mas também estamos lá na Cinelândia, quer dizer, usando o Odeon e abrindo espaço para novos grupos, novas bandas e novos poetas. Eu não me incomodo porque eu acho que sou mesmo um guerrilheiro cultural, um favorecedor, digamos assim.

BM – Você é casado?

C – Casei e descasei 500 vezes. Atualmente eu estou junto.

BM – Tem filhos?

C – Tenho dois filhos: um no Rio de Janeiro e outro em Brasília. De mulheres diferentes.

BM – Que tipo de música você escuta normalmente?

C – Eu não sou muito de escutar música, eu não tenho esse hábito. Então, eu tenho escutado o que as pessoas me dão pra escutar no CEP, que querem tocar. Eu gosto muito de samba, de Zeca Pagodinho, Chico Buarque. Atualmente eu tenho escutado bastante música instrumental, música eletrônica, algumas experiências nessa área.

BM – Muitos poetas retratam a mulher em suas poesias. Você já faz poesia pra alguma mulher, ou pensando em uma mulher?

C – Claro, já fiz várias. Normalmente poemas grandes. Fiz “O Cântico”, “O Número de uma Paixão”. Esses dois, com certeza, foram para duas mulheres que me inspiraram a tal. Agora, sempre existe uma mulher dentro de um poema, nem que seja a sua mãe (muitos risos). Mas tem, tem uns poemas que são mais claros de você perceber isso.

BM – A mulher vem cada vez mais ocupando espaços de destaque em nossa sociedade. Já se cogita até ma mulher na Presidência da República. Como você vê a evolução da mulher e as conquistas que elas obtiveram com o passar dos anos?

C – Eu acho que é justa a luta das mulheres. Elas foram massacradas durante muito tempo, subjugadas por uma cultura machista, uma cultura patriarcal, medieval, acho muito justa a luta das mulheres para se emanciparem desse jugo. Assim como acho justa a luta dos negros, dos gays. Todas essas lutas eu acho justas. Agora, eu só acho que, às vezes, há um desvio dessa luta porque eu acho que a grande luta é por uma igualdade social. Acho que a gente deve brigar por boas condições para toda a humanidade, então o feminismo às vezes foca muito só uma determinada parte da questão, assim como o movimento negro e o movimento gay. Eu acho que o buraco é mais embaixo. O buraco é sempre mais embaixo: é nunca perder de vista que o problema é social. Não adianta as mulheres se transformarem em homens, como às vezes o feminismo parece que quer conseguir. Ocupar, no mercado de trabalho, o lugar que é dos homens, isso não resolve absolutamente nada porque a função do feminino é fundamental para o equilíbrio da sociedade. Você tem que ter o feminino e o masculino. Então eu acho que a gente não pode perder nunca a visão do todo, do social, que é a divisão de renda mais igualitária, mais democrática. Isso eu acho básico porque não adianta nada a mulher se libertar e continuar essa má distribuição de renda porque a mulher pobre nunca vai ter as mesmas condições de trabalho do que a mulher rica.

BM – Mas essa questão transcende o sexo, né?

C – Pois é. Eu acho que transcende o sexo, a cor, a opção sexual, a crença, a tudo. É uma questão política, econômica, de princípios mesmo. Acho que a partir de uma redistribuição da renda é que todos vão poder ser mais felizes: tanto homens quanto mulheres, negros, gays, índios. Todas as crenças vão poder ser mais felizes depois de uma melhor distribuição de renda e uma melhor visão do social como um todo.

BM – Se você tivesse que começar tudo de novo, você faria igual?

C – (Risos) Igual é impossível, mas eu faria melhor. Eu faria melhor porque eu já aprendi a fazer muita coisa, mas eu não seria ninguém sem os erros que eu cometi, então acho que seria bem próximo do que eu já fiz. Estou completando 50 anos e estou muito feliz por ter conseguido realizar muita coisa de que me orgulho muito. E fazer 50 anos para mim é muito importante porque eu senti um upgrade na minha forma de trabalhar, nas coisas que acredito. Essa coisa meio informal, meio anárquica, irreverente e poética de ver a vida.