Durante o mês de março, dediquei a coluna às mulheres que foram mortas injustamente por suas posições políticas. Como não poderia deixar de ser, finalizo esta homenagem falando de um período histórico negro, a ditadura militar, que perseguiu milhares de brasileiros, homens, mulheres e crianças, que pensavam o Brasil de maneira diferente. Sou fruto deste momento, pois nasci no México em 1965, onde os meus pais foram obrigados a se exilar. Se tivessem ficado por aqui, os seus destinos poderiam ter sido iguais aos dessas mulheres que vamos relembrar nesta semana.
Quando retornei ao Brasil, em 1969, minha família sofreu todo o tipo de perseguição e, apesar de estar afastada do mundo político, minha mãe era chamada quase semanalmente para “prestar depoimentos no DOPS”. Nossa casa também era invadida freqüentemente por personagens estranhos e ameaçadores. Muitos dos meus amigos de escola sequer supunham o que estava acontecendo, já que as operações eram devidamente “secretas” e todo mundo tinha medo de saber um algo mais. Talvez por este desejo de revelar a verdade tenha me tornado museóloga e historiadora e, diante de tantos temas, me dedicado à história feminina brasileira.
No dia 31 de março de 1964, o Brasil sofreu um golpe militar. Até 1985, a liberdade de expressão tornou-se uma inimiga pública, nossos direitos humanos e constitucionais foram cassados abruptamente e quem se opusesse a estas medidas era “desaparecido”, torturado e muitas vezes assassinado. Em nome da “Segurança Nacional”, as prisões políticas tornaram-se violentos calabouços onde técnicas de humilhação física e emocional eram aplicadas em pessoas inocentes e, ainda hoje, marcam a vida de muitos brasileiros.
Hoje, esta história é um pouco mais conhecida e isto se deve não somente ao fim do governo militar, mas também à união das famílias das vítimas que criaram diversos movimentos a favor da anistia política. Me lembro de distribuir nas esquinas de Ipanema um panfleto pedindo a volta de exilados, dentre eles meu pai, e da emoção de perceber que os tempos estavam mudando e que finalmente poderia expressar todo o sofrimento sentido na infância.
Com o crescimento do Movimento pela Anistia foi surgindo também uma campanha nacional pela elucidação dos crimes e desaparecimentos cometidos pela ditadura militar. A partir de 1985, com o fim da ditadura, o Movimento pela Anistia deu origem às Comissões de Mortos e Desaparecidos Políticos e aos Movimentos Tortura Nunca Mais em diferentes localidades do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Porto Alegre, entre outras.
Por que recontar a vida destas mulheres desconhecidas do povo brasileiro? Porque elas fazem parte de nossa história e, neste sentido, suas vidas tem um valor inestimável para a nossa nação. A partir delas, poderemos estar sempre atentos para evitar os erros do passado, de maneira que os anos de chumbo permaneçam apenas como uma triste página na história do Brasil.
“Hoje, você é quem manda
Falou ta falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
e olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
esqueceu-se de inventar
O perdão…”
Alceri Maria Gomes da Silva era gaúcha, operária e liderava um movimento local contra a ditadura militar. No dia 10 de maio de 1970, sua casa foi invadida e ela foi metralhada, na frente de sua família. Tinha 27 anos.
Ana Maria Nacinovic Correa era carioca, estudava Belas Artes na UFRJ e ingressou no movimento estudantil na Aliança Nacional Libertadora. Em 1972, estava almoçando no restaurante Varella, junto com companheiros da política, quando foi denunciada pelo dono do restaurante ao DOI/CODI de São Paulo. O lugar foi cercado e todos que estavam ali dentro levaram tiros. Ana ainda estava viva, pedindo socorro, quando foi assassinada a queima roupa, por um policial. Não satisfeitos, os oficiais agrediram por horas o seu corpo, para mostrar que haviam dominado a situação a todos que observavam a cena, estupefatos. Tinha 31 anos.
Ana Rosa Kucinski Silva era paulista, professora universitária do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, militante da Aliança Nacional Libertadora. Sumiu na prisão, junto com seu marido Wilson Silva. Até hoje está desaparecida.
Áurea Elísia Pereira Valadão era mineira e tinha acabado de ingressar no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando se encantou com o movimento estudantil, em 1969. Dois anos depois, filiou-se clandestinamente ao Partido Comunista e mudou-se para o Araguaia, no Tocantins, para fazer parte de um movimento de guerrilha. Trabalhava como professora quando foi presa e morta. Tinha 24 anos.
Dinaelza Santana Coqueiro era baiana, estudava geografia na Universidade Federal da Bahia e era militante do Partido Comunista. Também morreu no Araguaia, com a mesma idade de sua companheira Áurea.
Gastone Lúcia Beltrão era alagoana e militante do Partido Comunista. Por ter estudado em Cuba foi denunciada aos órgãos de repressão brasileiros. Foi morta em São Paulo pela gangue de Sérgio Fleury, na época delegado de São Paulo e hoje reconhecido como um dos maiores torturadores do Brasil. Oficialmente, está desaparecida.
Escolhemos algumas heroínas para mostrar que havia insatisfação em todo o Brasil e que a repressão perseguiu ferozmente todas as pessoas que discordavam do governo militar. Hoje, vivemos em um país onde a polícia ainda é desumana e até muito pouco tempo não se reconheciam os direitos femininos. Tudo isto está se transformando e, sem dúvida, foi a resistência destas mulheres que tornaram vigilantes e batalhadoras a alma de algumas pessoas, dentre elas, esta que vos escreve.