Lá vem a chuva

Atravesso a rua a ponto de escutar a senhorinha de chinelas dizer ao cachorro:

– Vamos depressa porque lá vem chuva!

O cachorro levanta as orelhas em pânico: impossível obedecer à dona, visto o tamanho de suas pernas de salsicha.

Eu nem tinha percebido – não as pernas curtas, porque salsicha todo mundo conhece bem, mas o fim de tarde cinza. Olho para o céu e vejo nuvens em formato de sombrinhas.

A chuva gosta da minha camiseta branca. Acelero os passos em marcha olímpica, não por medo da transparência mas ciúme do meu tênis de bailarina

Faço as contas e acho que não vai dar tempo. Seria bom perguntar para a senhorinha de chinelas, mas eles, senhorinha e salsicha, já sumiram em meio à multidão apressada e aos despertadores estridentes dos camelôs que engarrafam as calçadas. Mesmo assim, entro no mercado para comprar dois ou três itens da minha lista imaginária de compras para logo mais: cebolinha (no molho, vem amarrada outra erva, que não tenho certeza do nome. Arrisco dizer que é salsa, só porque faz par, como garfo e faca), morangos (a safra do ano está boa e o perfume enche as narinas dos amantes) e o terceiro item, esqueci (fará falta). Compro, no lugar, pela primeira vez, um pote de salada de frutas. Demoro cinco determinantes minutos para eleger o mais colorido, onde tem uva, kiwi, abacaxi, mamão, melão e manga.

No corredor dos congelados, noto uma seqüência de olhares na minha direção – não na altura dos meus olhos, mas dois palmos abaixo. Disfarço. O empacotador, não: prefere meu corpo aos morangos. Colo o queixo no peito e descubro o motivo.

Não há quem negue um olhar – homens, mulheres, crianças, salsichas – a um par de bicos túmidos por baixo da roupa. Ainda mais hoje, no corredor dos congelados, cinco minutos antes da chuva, dois antes do período, dentro da camiseta branca de malha fina – aquela antiga, que já separei para doação não sei quantas vezes, mas tiro da sacola em cima da hora. Acabo de me lembrar do motivo.

Excita-me mais do que ao outro.

Dou boa noite ao empacotador e ando ligeiro pelos quarteirões que separam o mercado do meu prédio. Penso no cachorrinho que, a essa altura, deve estar em casa, comendo ração misturada com arroz.

Quando rompo a esquina, começa a chuviscar e, em três passos, chove – a senhorinha de chinelas estava certa, certíssima. Aposto como está tomando uma xícara de leite quente, olhando o cachorro (que come o arroz e deixa a ração) e fazendo que “sim” com a cabeça, quando, na verdade, quer dizer “não”.

A chuva gosta da minha camiseta branca. Acelero os passos em marcha olímpica, não por medo da transparência mas ciúme do meu tênis de bailarina. O porteiro me recebe com um sorriso e, quatro andares acima, destranco a porta do apartamento úmida

Pouso o tênis no tanque, tiro o short no corredor do banheiro, abro a torneira da esquerda, deslizo a calcinha pelas pernas e, finalmente, tiro a camiseta branca pela cabeça, espreguiçando na frente do espelho embaçado. Entro no box e mergulho nas águas de Lambari, em um banho que demora além do aceitável. Enquanto gasto metade do sabonete, penso em uma taça de onde transbordam morangos. É quando lembro do terceiro item: chantili.