Era 23 de dezembro de 1950. Dirce Magalhães, então com 20 anos, fazia as malas para ir à Petrópolis, no Rio de Janeiro, quando seu marido chegou em casa com uma febre altíssima. Ela também não se sentia bem, e resolveram cancelar a viagem. Foi o que salvou a ambos. Dirce e Marcos contraíam, naquele dia, poliomelite, uma doença, até então, rara e obscura no Brasil. “Em menos de uma hora e meia, fiquei paralítica da ponta do dedo ao último fio de cabelo”, conta ela. “A minha paralisia foi subindo, passou pela minha bexiga, pulmão, tinha dificuldades para respirar, perdi o movimento dos braços. Fiquei inconsciente por dez dias.” Os exames de sangue acusavam uma infecção, mas os médicos não conseguiam defini-la: a poliomelite é detectável apenas pelo exame de reflexo, o que, de início, não foi feito. Tinham levado meu marido achando que era reumatismo. Para mim, em coma, esperavam a morte.”
O casal já tinha dois filhos, uma menina de três anos e um menino de um. “Casei com 16 anos. A primeira vez que ele entrou na minha casa eu tinha 11 anos, mas já namorávamos desde os dez”, relembra, rindo. “Ah, mas eu parecia bem mais velha, porque era muito alta, esportista, dançava balé. Todo mundo pensava que eu tinha 15. Ele era sete anos mais velho que eu, piloto do I Grupo de Aviação de Caça da FAB, na II Guerra Mundial.” Foram para os EUA, em busca da cura. “Meu marido é uma pessoa extraordinária, me levou para o Hospital Institut of Reabilitation, sustentado pela Warm Springs Foundation, fundada pelo Presidente Roosevelt, também vítima da pólio. Os índios diziam que as águas das piscinas naturais da região curavam.
“Você acredita em milagres?”, foi a primeira coisa que os médicos americanos perguntaram à Dirce: “eu não acho que eu seja merecedora de um milagre”, respondi, mas eles acharam meu caso muito estranho. Era para eu estar morta ou andando, disseram.” Dos cinco ou seis casos de pólio no Brasil, Dirce e seu marido eram dois, ou seja, um grande mistério. “A poliomelite era para nós, o que a tuberculose era para os americanos. Mas lá, os estudos estavam mais avançados. Havia um espírito maravilhoso no Hospital, eles tinham uma enfermeira-chefe por andar, porém as atendentes todas eram voluntárias, parentes de pacientes. Então, um parente cuidava do parente do outro, e assim, todos tratavam a todos muito bem, porque queriam que os seus também fossem bem tratados.”
Poucas pessoas sabem que a pólio é uma paralisia que não tira a sensibilidade do paciente, pelo contrário, eles ficam supersensíveis. A dor é muito grande, pois centros nervosos e músculos são afetados. “Passei quase dois meses sem dormir um minuto em 24 horas, tomava treze injeções por dia que não adiantavam nada”, diz ela. O vírus da pólio só ataca, numa família, pessoas que tiverem as células nervosas mais bem constituídas, mas que por algum motivo, estas fiquem temporariamente debilitadas. “Na copa de 50, eu e meu marido voltamos de um jogo e, quando chegamos em casa, meu bebê de 1 ano estava entre a vida e a morte, com meningite. Foram 4 meses de muita luta, e graças a Deus ele ficou curado. Mas eu e o Marcos ficamos muito debilitados. Fomos um alvo fácil para a pólio.” Ele não teve tratamento e o vírus morreu, depois de um tempo, mas Dirce recebeu um volume muito grande de vitamina B dos médicos brasileiros, como tratamento, o que alimentava e mantinha os sintomas: “o vírus queria morrer em mim, mas não conseguia.”
Dirce podia ter ficado nos EUA, mas voltou com o marido. “Eu tinha obrigação de ficar no Brasil, para lutar. Achei que seria a maior covardia do mundo sair daqui.” Desde o início, por ter uma fé muito grande em Deus, ser católica, apóstolica, romana, e sempre crer que há luz no fim do túnel, Dirce enfrentou a doença como um desafio. Não só a sua, como a de todas as pessoas nas mesmas condições: “eu dirigi a primeira vacinação em massa na América Latina”, conta ela, “montamos postos por todo Rio de Janeiro, com quatro voluntários por local. Nunca tinha havido algo do tipo. Dr. Albert Sabin, criador da vacina oral contra a doença, veio ao Brasil nos parabenizar pessoalmente pelo trabalho. Foi uma emoção muito grande pela maneira que ele me abordou. Puxei um cigarro da bolsa e ele chegou com um isqueiro, e disse: “eu cheguei muito tarde para você”, e acendeu o meu cigarro. Jamais vou me esquecer daquele dia.” Ela foi também a primeira a aparecer em público numa cadeira de rodas. “As pessoas ficavam em volta de mim, curiosas, quando eu ia para o trabalho: fui convidada pelo Lacerda para coordenar a sua campanha.”
Paraplégica mas cheia de energia e vontade de viver, Dirce Magalhães teve mais dois filhos, Luis Fernando e Ronaldo. Foi a primeira mãe excepcional do ano, no Brasil. “A gravidez foi penosa, até os quatro meses, eu conseguia usar o colete que uso até hoje para me sentar. Depois, tinha que ficar deitada, porque o colete não fechava mais. Era desagradável, eu tinha muitas dores na coluna. Usava um travesseiro na barriga, pois não tinha músculo para segurar a gravidez”, diz. “Fiquei imensa de gorda, mas graças a Deus, tive todos de parto normal, maravilhosos, porque meus músculos eram completamente relaxados. Meu marido adorava criança, e me deu muita força. Estamos casados há 54 anos, e até hoje, somos apaixonados.”
De onde vem tanta força de vontade? “Sem fé você não vence nada. Tem que ter muita confiança em Deus, entregar nas mãos dele. Você não tem o direito de ficar down, porque já tem o dom da vida. As pessoas que sofrem precisam aprender a olhar para baixo, e ver que sempre tem alguém em pior estado. Se olhar só para as que estão melhores, é desesperador.” Dirce lembra que seu caso era um dos melhores, no hospital americano: “isso me deu muita força. Via aqueles bebês na enfermaria, amarrados na cama, convivi meses e meses com muito sofrimento, e nunca vi ninguém abrir a boca para se queixar. O meu caso, perto dos outros, não era nada.” Anos depois, ela teve a volta da pólio, um fato raríssimo: “voltei para a cama como um vegetal”, conta. Jamais se entregou: “Você tem que entender que Deus é um paizão, ele não castiga ninguém. Todo sofrimento é uma maneira de melhorar, nunca piorar. Sou super gratificada, tenho muito a agradecer a Deus. Tenho filhos, que casaram com suas cara-metade, e vivem em eterna lua-de-mel, netos e bisnetos perfeitos. Todos me ajudam muito, são maravilhosos.” Hoje com 71 anos, Dirce Magalhães cuida do marido, que sofre de Alzheimer. “A doença dele está se desenvolvendo devagar. Até nisso, eu tenho sorte”, fala, sempre com uma doce voz de quem sabe viver feliz.