Toco a campainha. A mocinha do Detran abre a porta, risca meu nome na lista e me entrega um formulário com dez questões de múltipla escolha. Entre elas: toma algum remédio?, faz tratamento psiquiátrico?, sente tontura?. Marco: Não, não e não, quer dizer, exceto quando entro na dieta do tomate. Bebe excessivamente? Minto. A mocinha do Detran recolhe meus blefes e também minha carteira vencida (a da foto lastimável), além de 42 reais em notas de vinte, dez e um. Aponta com a cabeça uma cadeira onde me sento. Quero ler um livro, mas o esqueci no carro, estacionado no lado direito da via, em cima da calçada.
Um homem de calça de pregas preta e camisa de manga curta azul-trocador segura minha ficha e lê alto:
– Rosana C. Ferreira.
– Eu! – levanto.
– Por aqui, Dona Rosane.
O trocador examina minha carteira vencida. Pergunto pela nova. Ele diz que, teoricamente, fica pronta em dois dias úteis, mas, em se tratando de Detran, ele aconselha esperar quatro. Detesto marido que fala mal da esposa
Acontece muito eu ser chamada de Rosane. Não gosto. Só que essa foi a primeira vez em que uma pessoa lê o meu nome e, numa fração de segundos, me batiza com outro. Olho atravessado para o trocador, vulgo médico de trânsito.
Vamos juntos para outra sala, onde sou induzida a sentar em um cadeira encardida, de frente para uma geringonça de 100 anos em que, suponho, terei que encostar a testa para o exame de vista. O trocador faz o gênero engraçadinho e canta as minhas respostas em fast-forward.
– Você já fez a prova de legislação do trânsito?
O trocador examina minha carteira vencida. Pergunto pela nova. Ele diz que, teoricamente, fica pronta em dois dias úteis, mas, em se tratando de Detran, ele aconselha esperar quatro. Detesto marido que fala mal da esposa, tijucano que renega o bairro, trocador do Detran que fala mal da instituição.
Ele encara a minha foto antiga (a lastimável) e olha para mim. Ou para a parede descascada – o trocador é estrábico.
– Usa óculos? – É o que parece – respondo, mal-criada. – Quer tentar fazer sem? Eu? Ou a parede descascada?
– Vou conseguir?
– Não sei!
– Tenho miopia. 1,75. O que você me diz?
– Nada. Não sou oftalmologista.
Encosto minha testa na geringonça puída. Sem óculos, aperto os olhos como as vovós na missa de domingo. O trocador, enfim, é útil: sugere que eu me afaste um pouco para acertar o foco.
– Bê, ele, zê!
Fico feliz, dou o primeiro e único sorriso para o trocador, iludida pela sensação de ter passado no exame sem óculos.
– Parabéns! Agora, a linha de baixo.
Por um acaso as placas de trânsito são escritas em corpo 6? Demoro.
– Põe os óculos que é melhor.
– Gê, erre, i – Que mais? – Efe, dê, pê. ***
Dois dias depois, vou buscar a foto, digo, a carteira nova. Ela me acompanhará pelos próximos, faço as contas, 1825 dias. Mais do que fotografia do batizado, dos quinze anos, abraçada ao Mickey ou fantasiada de garota De Plá, nenhuma foto é vista tantas vezes e por tantas pessoas como a da carteira de motorista. Suo frio.
No Detran, entrego à mocinha a papelada. Ela me devolve de imediato o boletim, sem dar pelota ao nove. Procura a minha foto na primeira gaveta. Nada. Segunda. Nada. Vai lá dentro. Volta. A carteira ainda não chegou. Detesto o médico do Detran.