Estudantes relatam violência e abuso dentro de universidades: 67% já passou por isso

A pesquisa “Violência Contra a Mulher no Ambiente Universit ário”, realizada pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular, trouxe dados alarmantes sobre o cenário do ensino superior no Brasil. Os números sobre violência sexual, psicológica, moral ou física apontados são comprovados por relatos de estudantes, que afirmam viver ou presenciar situações cotidianas protagonizadas tanto por colegas quanto por professores e funcionários.

A pesquisa foi feita com mulheres e homens de diversas universidades brasileiras. Para a elaboração das perguntas, as organizações consultaram especialistas e coletivos feministas de estudantes universitárias. No total, 1823 estudantes da graduação e da pós-graduação foram ouvidos. Desses, 1091 são mulheres e 732 homens e 76% são de faculdades particulares.

Violência contra a mulher na faculdade

No processo foram listados violência física e sexual, assédio, coerção, desqualificação intelectual e agressão moral ou psicológica.

Para os pesquisadores, o cenário é preocupante porque a universidade é um local de debate que prepara jovens para o futuro e, portanto, deveria ser onde este tipo de comportamento é suprimido, e não mantido e perpetuado.

Relatos de violência dentro da universidade

As mulheres que fazem parte da população universitária comprovam, na prática, o que a pesquisa indicou. Os agressores, no entanto, não têm um perfil específico. Eles podem ser professores, colegas de classe ou funcionários.

Professores

A pesquisa aponta que 20% das alunas consultadas ouviram comentários indesejados de natureza sexual de professores. Para Maria*, estudante de uma faculdade particular de São Paulo (SP), é muito comum, infelizmente, encontrar professores que agem de forma machista, que fazem discursos ofensivo ou que inferiorizam a capacidade intelectual das mulheres. “Fui apresentar um trabalho. Era eu, uma amiga e um menino. Eu e o menino falamos mais porque tínhamos feito mais. Na avaliação, professor ficou o tempo inteiro olhando para só para o meu colega. Em nenhum momento se direcionou a mim mesmo eu tendo feito e falado metade do trabalho. Ele comentou sobre coisas que eu fiz e falei com o meu colega e não comigo”, relata.

Em alguns ambientes o assédio pode ser ainda mais grave e, somado à relação de superioridade e poder existente entre aluna e professor, prejudicar a vítima não só emocional e moralmente, como temporalmente. Exemplo é o caso de Helena*, ex-estudante de uma faculdade pública de São Carlos (SP), que teve o término da graduação atrasado porque, ao negar se envolver com um professor, foi reprovada na disciplina em que ele lecionava. “Em uma festa da turma, um dos professores presentes se aproveitou do clima ‘alegre e descontraído’ para faz algo que mudou minha relação com o curso para sempre. Ele me viu entrando no banheiro e foi atrás de mim. Forçou a porta, entrou e me trancou com ele ali dentro, me segurou contra a parede e disse que queria ‘aprofundar as relações de amizade com  galera da turma’. Eu resisti e em alguns minutos ele deixou com que eu saísse do banheiro. Depois da situaçao, ele dedicou o restante da festa a tentar se manter próximo, com as mãos em mim, mesmo eu tendo dito que não estava a fim repetidas vezes. Curiosamente, era final de semestre. Eu havia tirado boas notas em todas as provas e trabalhos e minha média final na disciplina que ele oferecia seria próxima de 10. E foi de fato uma nota bem alta. Mas, reprovei mesmo assim, por faltas que ele alegara que eu tinha. E essa foi a jogada dele: me reprovar “acidentalmente” para me fazer marcar um encontro com ele com a finalidade de discutir o que havia acontecido. Marcamos um encontro em sua sala, e fui munida dos meus cadernos com as anotações de aula, todas datadas, para mostrar que eu não havia faltado por 10 vezes. Ele deixou bem claro: ‘essa é a sua palavra contra a minha. Você acha que comprova o que com o seu caderno?’. Ele me reprovara por não ter respondido à sua “investida” na festa de dois dias atrás. E assim se seguiu o absurdo: eu só podia aceitar a reprova. Era isso ou ceder. Não satisfeito, quando eu me levantei para ir embora, ele falou que poderia repensar minha situação caso eu “aceitasse uma caroninha até a casa dele”. Vi nesse momento o quanto minha posição de aluna era insignificante dentro da instituição. Eu e muitas outras companheiras, eramos na mão desses professores apenas um objeto de satisfação de ego e de poder”, conta. A estudante, no ano seguinte, teve que refazer a disciplina com o mesmo docente e foi constantemente ridicularizada e deslegitimada.

Colegas

Dos homens entrevistados, 27% acredita que tentar abusar de uma mulher bêbada não é violência. Joana*, estudante de uma universidade privada de São Paulo, conta que o primeiro momento dos calouros com os veteranos já é violento. “Quando entrei na faculdade, em 2013, participei do trote e lá sofri o primeiro e mais marcante abuso da minha vivência universitária. Estava já alcoolizada e toda suja de tinta, purpurina, ovo, vinagre, quando encontrei um amigo que havia passado no vestibular no ano anterior. Ele e outros colegas puxaram a mim e outra menina, e nos amarraram, uma de costas para a outra, de modo que não conseguíamos soltar os braços. Logo, um dos rapazes veio em minha direção, enfiou a mão por dentro da lateral do meu shorts, puxou minha calcinha e cortou com uma tesoura. Percebi que fizeram o mesmo com a outra menina, mas pedi para pararem imediatamente. O pedido, felizmente, foi atendido e eu voltei correndo para o grupo de calouras que estavam comigo antes”. No Brasil, o histórico desse rito de passagem é recheado de violência. Alunos chegam a obrigar mulheres e encenar atos sexuais e satirizam preconceitos como a gordofobia, a homofobia e o racismo.

Funcionários

Ana*, estudante de uma universidade pública de São Paulo, comenta que o assédio vem por todas as partes, inclusive dos funcionários. “O assédio começou no segundo ano da faculdade, quando comecei a ter mais contato com ele [funcionário]. Ele se aproxima de todas as alunas, costuma ser muito solícito, simpático, sempre disposto a ajudar. E na faculdade, esse tipo de comportamento chama muito a atenção, já que é difícil de conseguir até informações corretas por lá. Enfim, ele começou a me fazer favores da faculdade e a gente começou a conversar sobre minha vida. Eu me sentia desconfortável com os abraços apertados, os beijos melados e demorados. Ficava com a impressão de que ele ia beijar minha boca sempre que ia cumprimentá-lo. Mas demorei pra perceber que aquela situação caracterizava um assédio. Me sentia incomodada, mas como ele nunca tinha tentado nada propriamente dito, e sempre me ajudou muito, não queria pensar que pudesse ser isso. Até que várias amigas minhas começaram a reclamar dos mesmos comportamentos. E uma, mais próxima, me mostrou os e-mails que ele mandava pra ela, muito piores do que os meus. Não tive coragem de ir falar com ele. Mas essa amiga foi tirar satisfação e a partir daí, ele passou a complicar a vida dela na faculdade. Ela pretende procurar a diretora da faculdade agora que formou para formalizar uma reclamação dela, com os e-mails de várias outras garotas que passaram por isso com ele. Eu apenas me afastei. Cumprimento, mas evito contato. Foi bem recente isso. Tem cerca de um mês que evito chegar muito antes da aula pra não ter que esbarrar com ele por lá. Eu não queria acreditar que ele pudesse estar realmente fazendo isso. Fiquei cega durante anos. Sorte que ele nunca tentou algo mais sério”, relata.

Solução

No evento de divulgação da pesquisa, professoras, promotoras e estudantes debateram as possíveis medidas para o combate à violência contra a mulher no âmbito estudantil. Para as participantes, além da conscientização dos alunos, também é essencial que as instituições não se omitam e tomem atitudes condizentes com a gravidade dos casos, independentemente do encaminhamento judicial.

Dado importante: Mulheres sofrem violência principalmente de conhecidos, diz IBGE