Atenção: essa é uma história real e foi publicada de forma fiel ao relato da vítima. As palavras utilizadas podem ser fortes e abordar atos sexuais e de violência.
“Janeiro, 2007. Eu tinha 23 anos, era uma estudante de graduação e estava estagiando numa empresa que eu sempre quis trabalhar. Um grupo de estagiários resolveu fazer um churrasco de confraternização com todos os estagiários da empresa. Mesmo tendo um compromisso nesse dia, resolvi ir porque queria me enturmar. Apesar de estar há seis meses na empresa, não me relacionava muito com essa ‘galera’. Na minha cabeça, pensei ‘Vou lá, fico um pouco, depois vou embora‘.
O churrasco começou, regado a muita bebida, e para me soltar um pouco, comecei a beber cerveja. Uma ou duas horas depois, já estava mais à vontade, conversando com as pessoas, dançando. Lembro de um dos rapazes me passando um copo de algo com vodca (não me recordo que bebida era, mas lembro que era vodca, e não cerveja). Fiquei com medo de misturar, mas bebi.
Desde esse momento, tudo o que vem em minha cabeça são flashes de memória.
Corta para a lembrança 1. Estou sentada, embaixo de um chuveiro, acordando. Uma menina chama meu nome, tento falar que estou bem, mas não consigo. Minha roupa está molhada, não entendo o que aconteceu. Consegui abrir os olhos e pelas pessoas em volta, parece que eu realmente apaguei. Disseram que eu bebi demais, mas não me lembro disso. Consigo levantar e falo que vou esperar me restabelecer para ir embora. Mas não sei por que, eu não fui.
Corta para a lembrança 2. Estou no banheiro com um dos rapazes (o mesmo que me ofereceu bebida). Estamos nos beijando quando ele começa a puxar minha calcinha (estava de saia). Tento segurar a mão dele, mas ele continua insistindo. Não queria estar ali. Olho para o lado, por cima da cabine, tem alguém filmando a gente com uma câmera. Falei pra ele: ‘Para, porque estão filmando a gente!’ Ele ignora, e não consigo impedir que ele puxe minha calcinha pro lado e me jogue pra cima pra enfiar o pinto dele dentro de mim. Nem sei se ele estava de camisinha, mas não consegui reagir.
Corta para a lembrança 3. Estou sentada no banco de trás de um carro. Ouço um dos garotos falando para algumas pessoas do lado de fora: ‘Não se preocupa, a gente leva ela pra casa’. Deitei a cabeça e encostei na janela do carro. Dois rapazes (o mesmo do banheiro e outro que não lembro quem era) entram no carro e saímos do local, e percebo que em determinado momento, o carro embicou em uma entrada de motel. Eu não estava entendendo por que estávamos ali, mas eu não queria entrar naquele lugar. Falei que eu queria ir pra casa. Um deles disse: ‘A gente já vai levar você’.
Corta para a lembrança 4. Eu estou nua, deitada de barriga pra baixo. Vejo que os dois caras estão em volta de mim, bebendo, com uma câmera na mão. Um deles puxa meu quadril para me colocar de quatro. Eu tento me virar, falo que eu não quero, que eu quero ir embora para casa. Nessa hora, vem a lembrança da minha mãe. Um deles bota a mão no meu rosto e me diz: ‘Se você não fizer o que a gente tá mandando, vamos mostrar esse vídeo pra todo mundo’. Não sei dizer se por medo, mas obedeço. Ele me coloca de quatro e enfia no meu cu. Dói, fisicamente, mas dói muito mais na minha alma. Enquanto isso, o outro cara filma.
Não sei dizer quanto tempo fiquei ali com eles. Só sei que eles me levaram até em casa, já tarde da noite.
No dia seguinte, meu corpo todo doía, mas consegui levantar da cama para trabalhar. Dois dias depois, fiquei sabendo que um vídeo, em que eu aparecia no banheiro, estava rolando na intranet da empresa. O RH ficou sabendo e me chamou para uma conversa. Um dos caras (o mesmo da bebida) me procurou, antes, para falar que também havia sido chamado e pedindo para eu não falar nada, porque eu também tinha ‘culpa no cartório’. Na ‘conversa’ com a gerente do RH, me senti um lixo. Totalmente diminuída… Eu não sei qual era a formação dela, mas o que eu senti quando entrei na sala dela é que eu já havia sido julgada: eu era a ‘piranha’ que tinha feito sexo numa festa com estagiários da empresa.
Naquela mesma semana, eu e ele fomos demitidos. O outro rapaz não aparecia no vídeo vazado na empresa e também não trabalhava lá. Pelo menos foi o que eu soube depois. Sai de lá sem minha dignidade e sem qualquer chance de defesa.
Às vezes, acredito que minha memória criou algum mecanismo de defesa, porque não consigo me lembrar de tudo. Ainda acho que colocaram alguma droga na minha bebida, pois nunca havia me encontrado naquele estado. O fato é que até hoje me questiono: será que eu tive culpa de algo?
Hoje, trago um arrependimento no peito: o de ter ficado calada. Eu deveria ter procurado alguém, ou mesmo, falado com o RH o que tinha acontecido. Mas por medo, por vergonha, me calei. Como católica, só me resta acreditar em alguma justiça divina.
O que eu busco de vocês? Não sei, acho que apoio. Eu sei que a minha história é apenas mais uma de muitas que eu já li ou ouvi, sobre abusos e coisas do gênero. Talvez eu espere ‘ouvir’ de vocês que eu não tive culpa. Pois, por mais que, racionalmente, eu saiba disso, minha alma e meu coração ainda parecem não convencidos disso.”
Relato de estupro em festa de trabalho: uma tragédia imprevisível
Esse relato que você leu acima foi enviado para a redação do Bolsa de Mulher. ‘Será que eu tive culpa?’. Esse ainda é o pensamento de Valentina*, oito anos após ser vítima de estupro em uma festa com colegas de trabalho. Assim como outras mulheres que passam por abusos sexuais, ela foi julgada por pessoas que souberam do caso como a responsável pela violência que ela própria sofreu. O motivo? A cultura machista que culpa a mulher por beber demais, estar no lugar errado ou usar roupas ‘inadequadas’.
Nós, em uma tentativa de ajudar outras mulheres, contamos os casos de abuso sofridos pelas repórteres do Bolsa de Mulher, e foi isso que motivou Valentina a nos contar sua história. Ela, assim como outras leitoras, nos escreveu. E depois de cinco anos de terapia, conseguiu detalhar o ocorrido em janeiro de 2007 – nunca alguém da família dela sequer desconfiou, apenas duas amigas próximas sabem do ocorrido.
A terapeuta, terceira pessoa a conhecer o caso e única a saber bem o que Valentina sente, foi quem aconselhou a dividir a história. Essa é uma forma de aceitar, entender e superar. E acima de tudo, de reforçar uma verdade que poucos compreendem: a culpa nunca é da vítima.
A vítima
*Valentina é um nome fictício que usamos para manter a identidade da vítima em sigilo. Escolhemos por seu significado: Valentina é uma mulher valente, forte e vigorosa. É assim que enxergamos a mulher por trás dessa tragédia, uma pessoa forte e corajosa para enfrentar e superar essa marca que ficou em sua vida.
Nota da editora: A divulgação dessa história não busca polemizar, muito menos gerar audiência. Acreditamos que ao compartilharmos esses relatos ajudamos outras mulheres a entender o que é a violência: seja um estupro velado, seja no trabalho, seja no namoro com sexo não consentido. Não podemos nos calar, nem nos culpar. Precisamos educar filhos para uma sociedade mais consciente do respeito ao próximo. Agradecemos muito à Valentina por confiar em nós para contar sua história e sua dor. É muito triste perceber o quanto histórias assim se repetem e como a sociedade julga uma vítima de estupro.
E você? Já foi vítima de abuso?
Falar sobre as experiências pelas quais passamos é um processo importante para aceitar o que aconteceu e também para superar. Além disso, é muito importante para ajudar outras pessoas a enfrentarem essa situação e conscientizar a população sobre o problema. Foi isso que pensamos ao decidir criar espaço no site para essas histórias.
Se você sofreu violência, ligue para a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. O número é 180. Anônimo e gratuito esse serviço cobre todo o Brasil, 24 horas por dia, 7 dias por semana, incluindo finais de semanas e feriados.
Você também pode recorrer a qualquer delegacia para registro de um boletim de ocorrência, ou, caso haja no seu município, a uma Delegacia de Defesa da Mulher. É possível, ainda, ligar para a polícia (190). Caso não se sinta segura para ficar em casa, solicite abrigo na delegacia ou Centro de Referência de Atendimento às Mulheres.
Leia também
Saiba como denunciar um assédio ou abuso sexual
Abuso no metrô, listas de vadias e estupro em escola: onde vamos parar?
Violência no parto: fotos chocam ao mostrar marcas no corpo e cabeça das mães