Atenção: essa é uma história real e foi publicada de forma fiel ao relato da vítima. As palavras utilizadas podem ser fortes e abordar atos sexuais e de violência.
Nunca contei para ninguém o que vou contar, tampouco tive quem me entendesse na minha família.
Vivi numa família muito problemática. Cresci vendo meu pai beber e bater em minha mãe, sempre me metendo entre suas brigas para que ela não apanhasse. Sempre a defendi. Era uma mulher forte, mas que pouco sabia da vida, dos homens e do que dizia respeito a eles. Perdeu a virgindade muito cedo, tendo engravidado sem mesmo saber direito o que estava acontecendo, de forma que viveu uma vida de tristezas, achando que era só aquilo o possível. Era muito violenta conosco, seus filhos, sempre brigando, rebaixando e batendo em todos por motivos meramente fúteis. Mas hoje entendo suas dificuldades.
Atolada que estava na violência e na infelicidade, não conseguia nos tratar bem e nos dar um abraço doce ou algo do gênero. Sua vida era trabalho, brigas, dor e fome. Muito sofrimento e poucas alegrias. Assim foi educada e assim nos educou.
Sempre ouvi dela que eu não era desejada, que nasci por acidente, que não me queriam e que meu pai, certa vez, chutou a barriga dela quando eu ainda estava lá, no seu sexto mês de gestação. Não acho que isso seja positivo para ninguém. Cresci sem autoestima, sem segurança e me sentindo sempre muito inferior a todo mundo.
Minha vida resumia-se a ler (sempre gostei muito), ir à igreja para cantar no coral e torcer para que meu pai não chegasse bêbado no fim da tarde.
Por quinze anos, vivi uma vida de vergonha, pois me sentia mal ao sair à rua, sabendo que os vizinhos haviam escutado todos os gritos e quebra-quebras que aconteciam em nossa casa. Tinha raiva do meu pai, por ser bêbado e violento; ódio da minha mãe, por não mandar que ele fosse embora, por não resolver a situação. Como se fosse fácil.
Condenei minha mãe muitas vezes por me fazer viver naquele inferno só porque ela não queria viver sem “um homem”; como eu era ingênua.
Mal sabia que eu viveria a mesma situação, tantas vezes, em minha vida também.
Como num ciclo de horror, eu também me envolvi com homens violentos no decorrer da minha vida, que me bateram, violentaram e abusaram, destruindo ainda mais minha autoestima e força interior.
Aos quinze anos, conheci um rapaz que era nove anos mais velho que eu. Estávamos em outra cidade. Fui convencida por uma “amiga” a ir com ela para lá, pois tinha uma paquera e queriam se encontrar. Como ela não queria ir sozinha, pediu que eu fosse junto. Mal eu sabia que conheceria, nessa noite, uma das piores pessoas da minha vida.
Esse cara era amigo do paquera da minha referida amiga. No primeiro momento que eu o conheci, o santo já não bateu: gostava de músicas que eu detestava, era grosseiro, metido e ficava contando vantagens o tempo todo. No decorrer da noite, foi se aproximando e forçando uma convivência, que eu realmente não queria. Fomos, da lanchonete onde estávamos, para uma casa de um amigo deles. Havia uma piscina e minha amiga tirou a roupa para entrar com o seu paquera lá. Eu fiquei do lado de fora com o tal cara. Ele insistindo em ficar comigo e eu querendo ir embora. Até que cedi. Eu nem sequer pensava em sexo, pois era virgem, era uma menina. Isso estava longe da minha cabeça. Ele começou a me beijar e, lá pelas tantas, resolveu pegar a lata de cerveja que estava bebendo e derramar na minha cabeça. Não sei o que passou pelas ideias dele. Talvez não tivesse mesmo um cérebro. Fiquei muito chateada e fui falar para a minha amiga que queria ir embora. Dei um escândalo.
Mas estávamos enrascadas, pois o ônibus que nos levaria para casa só sairia às seis da manhã. Ela se recusou a deixar o paquera de lado, pois eles estavam muito bem juntos.
Fiquei ali reclamando, até que o paquera dela saiu da água e foi conversar com o dito cujo, falando que ele havia exagerado e que agora eu queria ir embora. Que aquilo tinha sido chato. Ficaram conversando num canto e resolveram ir à casa dele para que eu pudesse tomar um banho e me secar. Não tinha levado roupa, estava fedendo a cerveja e me senti muito mal.
O clima acabou completamente naquela hora. Já não tinha ido com as fuças dele, ainda mais ele tendo feito aquilo. Fomos a casa do paquera de minha amiga, tomei um banho e tive que colocar a mesma roupa molhada e cheirando a cerveja. Meu cabelo molhado, todo zuado e eu sem poder voltar para casa. Aí, resolvi pegar o violão e tocar uma música, pois eu tocava um pouco e sempre cantava (todos sempre disseram que eu cantava bem). Ao me ouvir, ele logo foi dizendo que eu não sabia tocar nada, que aquele “blem blem blem” até ele fazia e que era horrível. Fiquei ainda pior. O que havia de errado com essa pessoa?
Eu já não tinha autoestima e ainda ele vinha falando essas coisas.
Quando, finalmente, fomos embora, pensei que nunca mais o veria e que aquilo só seria uma lembrança triste. Mas não foi. Esse cara começou a me perseguir por todos os lados, afinal, ele queria, talvez, me humilhar mais e tirar minha virgindade. Me esperava na saída da escola e insistia muito para me dar carona, sempre tentando me agarrar e passar a mão em tudo. Ele nunca me respeitou.
Nosso imaginário está repleto de ideias de que uma pessoa assim é ruim, que ela é violenta e má o tempo todo. Mas não é bem assim. Mesmo o pior dos vilões pode ser doce e não é ruim o tempo todo.
Aos poucos, fui me acostumando com aquilo e passei a gostar dele. Sempre que saíamos, ele tentava fazer sexo e eu recuava o máximo que podia, pois não me sentia preparada ainda. Eu não gostava dele a ponto disso.
Mas, de tanto insistir, acabei cedendo. Não foi bom porque eu não estava mesmo com vontade e fui tudo muito doloroso e forçado. Meu consentimento, na verdade, foi somente uma forma de me livrar daquela insistência.
Voltei para casa achando-me uma nojenta, suja e com vergonha. E se a minha mãe descobrisse? Por sorte, ele havia usado camisinha.
Mas, minha mãe descobriu, pois viu manchas de sangue em minha roupa e percebeu que eu andava estranha há tempos. E fez o que eu jamais imaginaria que ela poderia fazer: procurou o cara em seu trabalho e deu um escândalo, dizendo que ia denunciá-lo porque eu era menor de idade e o que ela ia fazer com uma filha impura dentro de casa agora? O que os outros iam dizer? Que eu era uma vagabunda. Nem na igreja poderia pisar mais.
Pois bem, o bafafá foi tanto que esse cara aceitou se casar comigo. E eu fui convencida de que aquilo era o melhor para mim. Durante um ano e meio, vivi com ele. Ele me monitorava o tempo todo. Conseguiu pedir transferência do trabalho para que nos mudássemos da cidade onde nasci e ficasse longe de amigos e família. Não deixava que eu visitasse meus pais e não permitia que minha mãe viesse a minha casa. Também não podia trabalhar. Quando ela vinha, forçando uma barra, ele a tratava muito mal, pois tinha ciúmes dela. Não podia comprar comida no mercado, era obrigada a receber a família dele o tempo todo, mas a minha eu nem podia ver, quanto mais eles visitarem a minha casa. Humilhava-me, dizendo que eu não sabia cozinhar, que era preguiçosa, que não fazia direito as coisas, apesar de suas roupas e sapatos estarem sempre limpos e bem arrumados. Às vezes, passava dias inteiros dentro de casa, enquanto ele trabalhava ou saía com amigos. Se ele soubesse que eu havia falado algo para minha mãe, começava uma briga enorme. Eu me via vivendo o mesmo inferno que vivi quando criança.
Sempre que podia, ele me diminuía na frente dos outros, falando sobre o quanto eu não sabia cozinhar, o quanto eu dormia, o quanto eu só queria ler. Só podia usar as roupas que ele comprasse, apenas em determinadas épocas do ano. Falava muito mal de minha mãe e de minha família o tempo todo. Sentia-me desamparada, sozinha, encurralada.
As coisas foram ficando muito ruins e só culminaram na separação quando eu consegui ser aprovada numa universidade. Tive forças de sair de casa e ir em busca da minha liberdade.
Saí “com a mão na frente e a outra atrás”. Quando eu disse que não queria mais viver com ele, que queria ir embora, ele até foi comigo ao advogado e fez um contrato, no qual afirmava que pagaria uma pensão para mim, até que eu conseguisse um emprego. Assim, eu concordava em não ficar com nada que havia dentro de casa, móveis e pertences que ajudei a comprar com meu dinheiro (pois trabalhava antes de casar). Porém, ele modificou o contrato, quando fomos nos divorciar amigavelmente. Lembro da juíza dizer que eu havia cedido o direito a tudo e que, afinal, era melhor assim, pois eu tinha saúde para trabalhar. Que mulher era essa? Como ele tinha “conhecidos” no Fórum e fazia direito, creio que deva ter contado outra história, pois não entendo como uma mulher pode achar que eu estava “explorando” aquele ser.
No entanto, eu preferi não falar nada, pois só queria mesmo era me livrar dele e da vida horrível que vivia. Depois disso, ele começou a ligar para a casa dos meus pais, contando histórias que resultavam em brigas entre minha mãe e eu. Ligava para a pensão onde eu morava, todos os dias, perguntando se eu não iria voltar para casa ou se eu já havia virado prostituta, pois era só para isso que eu servia.
Bem, dessa pessoa, não quis ver nem a sombra mais. Lembro muito bem de cada momento de humilhação que vivi e do quanto foi bom começar tudo novamente, sem dinheiro, emprego e onde morar, mas feliz por estar livre, dona da minha vida.
Hoje, sou graduada e mestre. Não dependo de ninguém e tenho minha vida para mim, mesmo que tenha sofrido por anos até conseguir me organizar.
Por que publicar esse relato?
Alertar, ajudar e fazer entender que a culpa nunca é da vítima. Esse é o intuito ao publicar relatos escritos por nossas leitoras. Abrimos esse espaço após divulgarmos uma série de matérias sobre abusos sexuais e notar que a violência contra a mulher é uma realidade triste e mais presente do que podíamos imaginar.
Passamos a receber uma quantidade enorme de e-mails e publicamos aqui os fatos narrados de forma fiel, com autorização das vítimas e preservando a identidade das pessoas envolvidas para evidenciar a quantidade enorme de casos que acontecem. Enquanto as histórias ficam escondidas, as vítimas continuam sofrendo, os agressores continuam impunes e os casos se repetem cada vez com mais frequência. Com nossas reportagens especiais – nas quais também indicamos a forma de agir e se proteger – queremos abrir os olhos de familiares e amigos para problemas que podem estar acontecendo, e que não devem ser ignorados. Se pudermos ajudar uma mulher que seja, estaremos cumprindo nosso papel.
Relacionamento abusivo
O relato acima mostra um tipo de abuso que, muitas vezes, não ganha tanta atenção. Contudo, é importante saber que, mesmo que se tenha uma relação estável com o agressor, um ato sexual forçado é, sim, um estupro. Além disso, violência psicológica e ameaças também são formas de abuso, um tipo de abuso emocional – que pode deixar tantas sequelas quanto o abuso físico. E esse tipo de agressão também é combatido pela Lei Maria da Penha.
Caso esteja sendo vítima ou conheça alguém que sofra com esse problema, procure ajuda. A Central de Atendimento à Mulher atende através do número 180, 24 horas por dia, e pode indicar a melhor forma de agir. Se preferir, procure presencialmente pela Delegacia da Mulher mais próxima de você – a ONG Maria da Penha disponibiliza uma lista de delegacias especializadas e pode ajudar.
E você? Já foi vítima de abuso?
Falar sobre as experiências pelas quais passamos é um processo importante para aceitar o que aconteceu e também para superar. Além disso, é muito importante para ajudar outras pessoas a enfrentarem essa situação e conscientizar a população sobre o problema. Foi isso que pensamos ao decidir criar espaço no site para essas histórias.
Se você sofreu violência, ligue para a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. O número é 180. Anônimo e gratuito esse serviço cobre todo o Brasil, 24 horas por dia, 7 dias por semana, incluindo finais de semanas e feriados.
Você também pode recorrer a qualquer delegacia para registro de um boletim de ocorrência, ou, caso haja no seu município, a uma Delegacia de Defesa da Mulher. É possível, ainda, ligar para a polícia (190). Caso não se sinta segura para ficar em casa, solicite abrigo na delegacia ou Centro de Referência de Atendimento às Mulheres.
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