Arroz no ponto

Meu pai sempre disse que a melhor forma de julgar um bom cozinheiro é pelo seu arroz. Não pela sua sauce bernaise, não pelo seu soufflé, mas pelo arroz mesmo. Branco. Sem nada.

É verdade que um bom arroz branco tem lá os seus segredos. Também é verdade que no começo eu apanhei um pouco porque minha mãe – que tentou me ensinar a fazer seu famoso arroz frito – tinha um raio de medida que não se equiparava a nenhuma das minhas e meu arroz sempre ficava muito duro ou mole demais. Tratava-se de uma caneca de alumínio, que ela tem até hoje, de capacidade volumétrica ignorada. Para piorar, já percorri das mais sofisticadas maisons gourmets aos cafofos mais pulguentos e nunca encontrei nada nem remotamente parecido. Um belo dia, criei juízo e tomei a única decisão sensata para um caso assim: desisti.

Mas o sofrimento só durou até eu descobrir o maravilhoso mundo do arroz escorrido. Desse dia em diante, minha vida mudou. O princípio, mais velho que andar pra frente, é o mesmo do macarrão. Meu arroz nunca mais deu errado. Só sucesso!

Munido de seus instrumentos ainda etiquetados da loja, da panela de aço inox nova em folha e da cozinha de última geração, ele sacou o telefone sem fio e não teve dúvidas: ligou para sua consultora culinária

Foi por isso que dia desses, quando me pediram uma receita de arroz, eu não hesitei e mandei ver no arroz escorrido, sem medo de ser feliz. Como o autor do pedido não tem muita prática, pediu a receita “por escrito”. Aí vai ela:

Preparação psicológica
Você sabe fazer Miojo? Já fez alguma vez? Então, pronto. Isso é o bastante.

Preparação propriamente dita
Ferva uma panela com água. Não importa o tamanho da sua panela, nem a quantidade de água. Apenas pegue uma panela, encha com água até dois terços da capacidade e ponha para ferver. Quando isso acontecer, ponha sal (duas colheres de chá devem ser suficientes) e o arroz cru. Quanto? Sei lá! Depende de você. Para um macho faminto, meia xícara de arroz cru costuma ser o bastante. Para uma pobre fêmea vulnerável, um terço de xícara é mais que suficiente. Se não tiver xícara para medir, faça como os italianos: enfie a mão (lavada, hein?) dentro do saco e apanhe dois punhados de arroz por pessoa. Jogue na panela e marque treze minutos* no timer ou no seu relógio de pulso. São treze minutos apenas. Nem dez, nem quinze. É sensato dar uma mexidinha com uma colher de pau uma ou duas vezes no decorrer do processo, só pra soltar o arroz. Terminado o tempo, apague o fogo e escorra o arroz numa peneira. Não tem peneira? Então, capriche na psicomotricidade fina e escorra segurando a tampa da panela. Pronto. Difícil assim e totalmente à prova de erros.

*Esse tempo de 13 minutos é para o arroz que eu uso: o famoso Tio João, à venda nas boas casas do ramo, em práticas embalagens de 1, 2 e 5 Kg, de acordo com as suas necessidades de consumo.

Aí, um belo dia, o macho inteligente, bem sucedido, pós-graduado e com mestrado no exterior começou a sentir fome e resolveu fazer arroz. Organizado, já havia providenciado antecipadamente todos os ingredientes. Arroz, inclusive. Ansioso por desbravar terras nunca dantes adentradas, sacou o laptop e consultou a receita. “Moleza”, pensou, otimista. “Já fiz coisas muito mais complexas”. De fato. Munido de seus instrumentos ainda etiquetados da loja, da panela de aço inox nova em folha e da cozinha de última geração, ele sacou o telefone sem fio e não teve dúvidas: ligou para sua consultora culinária, só por precaução. Vai que tinha alguma “pegadinha” na receita…

Informado, assessorado e monitorado remotamente pela consultora, escolheu uma bela trilha clássica para dar o clima imponente que a ocasião exigia e ligou o ar condicionado para não correr o menor risco de suar. Então, encheu uma panela com água e acendeu o fogo. Sucesso total! Em pouco tempo, a água começou a borbulhar. Dono da situação, ele colocou o sal – duas colheres de chá, segundo a consultora – e foi medir o arroz. Foi quando se deu a tragédia.

Talvez Deus seja caprichoso e goste de brincar com as pessoas. Talvez tenha sido o excesso de tarefas complexas executadas com galhardia durante o dia. Talvez a psicomotricidade fina não estivesse mais tão afinada naquela hora da noite. Talvez tenha sido sabotagem da consultora remota ou da vendedora da loja, que o convencera a optar por aquele modelo de xícara de medida em detrimento da outra, que ele havia preferido pelo design. O fato é que uma xícara de medida enroscou em algum lugar e o arroz foi ao chão, transformando o piso imaculadamente preto da cozinha num comercial de shampoo anticaspa.

Perturbado, o pobre macho amaldiçoou céus e terras. Disse que aquilo não era possível, que era um absurdo, que era sacanagem do arroz, da xícara, da cozinha e da consultora que, a essa altura, explodia de rir do outro lado da linha.

Mas um homem de fibra não se abate à toa. Passado o choque inicial, o espírito empreendedor voltou a dominar. Intrépido, mediu novamente o arroz e o colocou na panela com um movimento seco e decidido. Acionou o timer digital, programando o tempo informado na receita. Não satisfeito, localizou a vassoura o que estava no chão e juntou o estrago num montinho. Precavido, manteve a consultora na linha. Se algo desse errado com o cozimento, ela teria que responder. Passados os treze minutos, ele desligou o fogo e escorreu o arroz da panela, vitorioso. Provou. Aparentemente, tudo certo. Já podia liberar a consultora.

Hoje, quem faz o arroz em casa é ele. E querem saber? Ela a-do-ra!

Ana Téjo , 37 anos, publicitária, redatora, tradutora, nadadora, planejadora, cozinheira, mãe e escritora, quase nunca nesta ordem. Administra, sempre que possível, dois filhos elétricos, uma babá rabugenta, um trabalho eletrizante, uma mãe obstinada, um namorado apaixonante e uma vontade compulsiva de escrever.