Sempre que eu dou receitas regionais aqui acontece a mesma coisa: aparece algum Membro Honorário do Centro de Defesa das Tradições Nordestinas – ou Vietnamitas, ou Congolesas, ou Belgas, ou Venusianas – dizendo que eu não entendo nada daquilo; que o meu Caldo verde/Tarte Tartin/Sauce Béarnaise/Buchada de Bode é fajuto, que não tem nada a ver com a receita original, que estou corrompendo as tradições e outros impropérios assim.
Acredito, do fundo do coração, que “receita original” é uma coisa que não existe. A comida, assim como as receitas, são coisas orgânicas, que evoluem e sofrem mudanças e adaptações com o passar do tempo e a disponibilidade dos ingredientes. Lembro muito bem de perambular pelo livro de sobremesas da minha avó e de encontrar receitas – e não eram poucas – que pediam 12 ou 15 gemas. Alguém imagina, hoje em dia, fazer um docinho com 12 gemas? Seria internação na hora, só de culpa, por imaginar o nosso colesterol indo às alturas. Em outras receitas, havia banha, toucinho, litros e litros de creme de leite e outras coisinhas que a gente prefere maneirar. No livro da avó portuguesa de uma amiga, encontramos medidas em razões monetárias, como “dois escudos de farinha de trigo”! Fazer o quê?
Brasileiro ou africano, o vatapá é uma peixada em forma de creme ou purê “pedaçudo”. Pode ser feito com fubá, farinha de mandioca ou pão amanhecido
Todo esse preâmbulo só porque hoje eu vou dar receita de vatapá. Não o vatapá das histórias de Jorge Amado, nem o vatapá da música de Dorival Caymmi, mas o meu. O da minha família, que também tem baianos “de terreiro”, filhos de Xangô e de Oxum, gente de hábitos tradicionalíssimos, que viveu cercada por Todos os Santos desde o nascimento. O vatapá de hoje é o que a gente faz lá em casa. É aquele que, sempre que vou preparar, trato de avisar os convidados não-iniciados para não criar saias-justas incontornáveis.
Minha receita, como tantas outras, foi sofrendo adaptações com o tempo. Fui, por exemplo, substituindo alguns ingredientes (saiu o fubá e entrou o pão amanhecido), tirando os que não gosto, como coentro (fico arrepiada só de escrever o nome) e amendoim e equilibrando os demais. O resultado é o que vocês vão ver aqui. Se não agradar, faço das palavras de Caymmi as minhas: “Quem quiser vatapá, que procure fazer…”
Uma pitadinha de história
A origem do vatapá é controvertida. Enquanto alguns antropólogos, como Artur Ramos, defendem que “foi o negro sudanês quem introduziu no Brasil o azeite de coco de dendê ( elais guineensis), o camarão seco, a pimenta malagueta, o inhame, as várias folhas para preparo de molhos, condimentos e pratos. E ainda modificou, com seus processos, a cozinha indígena ou portuguesa”, outros historiadores, como Câmara Cascudo, afirmam que “os africanos desconhecem a palavra vatapá. Na culinária, como em outras manifestações culturais africanas no Brasil, está ocorrendo o fenômeno de torna-viagem.” Assim, de acordo com Câmara Cascudo, o vatapá é brasileiro e foi levado à África pelos escravos libertos que retornaram à terra de origem. O milho usado na receita indicaria a origem indígena do prato.
Brasileiro ou africano, o vatapá é uma peixada em forma de creme ou purê “pedaçudo”. Pode ser feito com fubá, farinha de mandioca ou pão amanhecido. É temperado, oficialmente, com cebola, alho, tomate, coentro e gengibre, além de amendoim e castanha, ambos torrados e moídos. Sem esquecer do azeite de dendê, do camarão seco e do leite de coco, naturalmente. É servido sempre com caruru (uma baba de quiabo com camarões, só para iniciados) e arroz branco, escorrido.