Receita para tirar a fome

Tudo na vida tem uma razão de ser. Quando eu digo que não gosto de galinha à cabidela (ou frango ao molho pardo, como preferem os do sul), explico-me:

Um dia, lá pelos dez anos, fui passar as férias em Recife. A idéia era fazer uma grande reunião de família com todos os tios, tias, primos, primas, avós, mães, pais, irmãs e quem mais coubesse.

Parêntese: numa família em que uma bisavó sozinha teve vinte e três filhos, o quesito “espaço físico” precisa ser levado seriamente em consideração. Fecha parêntese.

Depois de escorrida, a galinha precisa ser depenada. Siiiiiiim! Porque, ao contrário dos frangos que compramos na área refrigerada dos hipermercados, as galinhas de verdade têm penas (e muitas)

Para a ocasião, meu tio alugou uma casa imensa que abrigasse a turba toda. Nos fundos da casa, um quintal gigante que, dentre outras coisas, tinha vários coqueiros e uma jaqueira, que fez um estrago danado no carro de um tio mais distraído. Mas isso é outra história.

Pilotando o fogão, além do meu pai (que tratou de incluir na bagagem alguns utensílios indispensáveis, como suas próprias facas de cozinha), estava Maria Auxiliadora, uma empregada free lancer, contratada especialmente para a ocasião.

Maria Auxiliadora, uma purista, gostava de preparar tudo nos conformes. Motivada pelo batalhão de hóspedes, minha tia a instruiu para que proporcionasse um tour pelos mais tradicionais repastos da culinária nordestina. “Sim, senhora”.

Pois bem. Chegou o dia da galinha à cabidela. Maria Auxiliadora não teve dúvidas: mandou trazer a bicha viva, para ser abatida in locco.

Agora é um bom momento para os leitores de estômago fraco pararem de ler.

Como era para cabidela, Maria Auxiliadora imobilizou a penosa com uma perna, apoiou-a num banquinho e, em vez de torcer-lhe o pescoço, o que, por si só, já é bastante traumático de assistir, afastou um punhado de penas para cada lado e, com um golpe certeiro, decepou a cabeça da galinha com uma faca afiada. Não sei se alguém já teve o desprazer de ver tal cena, mas leva alguns segundos para “cair a ficha” da galinha de que “ups! Perdi a cabeça!” e o corpo decapitado da ave fica saltitando, inconformado com a brutalidade do assassinato.

Prática, Maria Auxiliadora sacou uma bacia com um pouco de vinagre que já havia deixado separada, prendeu a galinha pelos pés, amarrando-a em um cabo de vassoura atravessado entre o balcão e a mesa, e deixou-a ali, invertida, ” pru o sangue escorrer todinho. O vinagre é pra num taiá, num sabe?”, me explicou, didática.

Vai piorar. A grande graça da receita é justamente o molho feito com o sangue do animal abatido. Os apreciadores dizem que quanto mais molho, melhor. Pois é. Na Recife daquela época, por mais improvável que pareça naquele clima, há barraquinhas de feira que vendem saquinhos de sangue a granel, para os aventureiros que quiserem preparar o prato clássico mas não se habilitarem a matar a galinha em casa. Não posso dizer com honestidade se Maria Auxiliadora adquiriu alguns pacotinhos desses. Eu diria que sim, mas talvez seja desmentida pela família, acusada de delirar e aumentar a história. Assim, digamos apenas que eu fui informada de que era possível comprar sangue, a granel, numa feira livre, em Recife.

Depois de escorrida, a galinha precisa ser depenada. Siiiiiiim! Porque, ao contrário dos frangos que compramos na área refrigerada dos hipermercados, as galinhas de verdade têm penas (e muitas). O trabalho deve ser feito à mão, arrancando com força, para sair pena toda. Quando o trabalho parece concluído, vem outra parte forte (quem vem do interior já deve ter visto ou, pelo menos, deve lembrar do cheiro “desta parte”). Inevitavelmente sobram na galinha penugens difíceis de tirar. A solução é colocar um pouco de álcool em uma bacia de alumínio, tocar fogo e passar a carcaça do bicho por ali, para queimar as penas. Cheira como cabelo queimado; um horror.

Mas não é só isso! Quem acha que os miúdos dos galináceos vêm originalmente em práticos saquinhos plásticos, já limpos e organizados dentro do vão oco do bicho, engana-se mais uma vez. Para limpar uma galinha, é necessário abrir a danada por baixo – depois que o sangue todo tiver escorrido – enfiar a mão nas entranhas e ir arrancando os órgãos internos, um por um ou aos punhados, de acordo com a sua resistência e tolerância. Então, e só então, dá para separar o fígado, a moela, o coração, os pulmões e por aí vai.

Passadas essas etapas hard core, vêm as partes triviais do preparo. Segurar por baixo das asas como se fosse um recém-nascido, esfregar com suco de limão, refogar com cebola e louro numa panela com óleo, salgar e cozinhar brandamente com um pouco de água, até a pobre galinha ficar macia. Nos momentos finais, separa-se um pouco do caldo em que a galinha está cozinhando, mistura-se com o sangue que ficou reservado, e dissolve-se ali um pouco de farinha de trigo (para engrossar). Água, sangue e farinha voltam para a panela principal e são cozidos até a consistência desejada, mexidos com cuidado com uma colher de pau.

Deu para entender por que é que eu não gosto? Então tá. Para quem não entendeu, uma ameaça: na semana que vem, sou capaz de publicar um receita de sarapatel, que é mais ou menos o mesmo princípio da receita da galinha, só que com miúdos de porco cozidos no sangue do próprio porco. Alguém se habilita?