Direitos da gestante: Analgesia, tipo de parto e acompanhante são escolhas da mulher

por | jul 15, 2022 | Gravidez e bebês

Diante de tantos casos de violência obstétrica que repercutiram recentemente, uma dúvida desponta: até que ponto a gestante tem poder e liberdade de escolha sobre seu próprio parto? Em meio aos debates sobre a falta de segurança e liberdade da mulher, consultamos especialistas em direitos da gestante para entender como funciona a dinâmica entre equipe médica e parturiente no pré, durante e pós-parto.

O que é violência obstétrica?

Primeiramente, é importante entender e diferenciar as múltiplas formas de violência obstétrica das quais as gestantes estão sujeitas. Esse conceito tem sido construído nos últimos anos, no Brasil e no mundo, na tentativa de proteção e amparo às mulheres. Desde 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a violência obstétrica como “violação dos direitos humanos fundamentais”.

São consideradas formas de violência obstétrica:

  • Abusos verbais (xingamentos, humilhações, palavrões, etc.);
  • Restrição da presença de acompanhante;
  • Procedimentos não consentidos;
  • Violação de privacidade da parturiente;
  • Negligência com medicação (tanto o excesso de substâncias como a recusa em administrar analgésicos quando solicitados pela gestante);
  • Violência física (manobras não autorizadas, empurrões, amarração de partes do corpo, etc.);
  • Violência sexual;
  • Demais formas de desrespeito, maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto.

A advogada Thaís Perico, mestranda em políticas sociais pela UNIFESP, membra da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e da Rede Feminista de Juristas, explica como essas violências são definidas. “No momento do parto, estamos vivenciando um momento de vulnerabilidade. Tudo isso se traduz em flagrantes de violação de direitos humanos”.
O “terrorismo” médico que pressiona e induz o parto de formas inapropriadas também pode ser considerado uma forma de violência. “Muitas mulheres que estavam em evolução para um parto normal acabam se vendo aterrorizadas pela equipe médica. Toda mãe responderia ‘sim’ para o caso de um médico avisar que ela precisa de um procedimento de emergência para salvar o bebê; ela diria: ‘Faça o que for necessário’. Muitas vezes, esse ‘necessário’ é muito menos do que foi feito. A gente observa ali uma intervenção desnecessária, que configura uma violência obstétrica”.

Excesso de sedação e violência obstétrica

A questão de excesso de medicamentos é um exemplo dessa “intervenção desnecessária”. “Mesmo no parto cirúrgico, a mulher tem o direito de acompanhar esse momento. A anestesia orientada é a raquidiana, justamente para você continuar acompanhando todo o momento do nascimento do seu filho. Não faz o menor sentido a mulher estar desacordada, por exemplo”, justifica a advogada. A anestesia raqui é regional, e serve para tornar apenas uma parte do corpo insensível à dor, sem adormecer a paciente.

A enfermeira obstétrica Cinthia Calsinski, doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ressalta como a violência obstétrica é “muito comum”, mas invisibilizada. “A violência obstétrica é muito oculta. A sensibilidade da mulher de perceber que ela está sendo violentada, nem sempre é fácil. São palavras, maneiras de agir, falta de respeito, ou uma assistência não tão adequada. Às vezes, a mulher não tem condição de avaliar tudo isso (no momento do parto)”, destaca.

O conhecimento, contudo, pode ser uma ferramenta que ajude a garantir que a parturiente tenha seus direitos preservados.

Direitos da gestante

Acompanhante

O direito a um acompanhante é assegurado pela Lei Federal n° 11.108/2005, conhecida como ” Lei do Acompanhante“. Por meio dela, todos os serviços de saúde públicos ou privados são obrigados a permitir que um acompanhante esteja presente durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto junto à parturiente.

Thaís Perico exemplifica que o direito não se aplica somente ao pai da criança, como muitos acabam confundindo. “Geralmente é o pai do bebê, mas isso não significa que o acompanhante seja necessariamente alguém com paternidade ou maternidade socioafetiva. É obrigação da equipe médica orientar a gestante que é um direito dela estar acompanhada”.

Portanto, a gestante pode ser acompanhada por um familiar ou outra pessoa de sua confiança. A presença da doula também é autorizada e incentivada. No Rio de Janeiro, sua presença é obrigatória quando solicitada pela gestante de acordo com a Lei Ordinária nº 6305/2017, sem substituir o acompanhante previamente instituído pela Lei Federal de 2005.

Cesariana

A ginecologista e obstetra Elis Nogueira, membro da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP), relata como a opção pelo parto cirúrgico — conhecido como cesárea ou cesariana, onde o recém-nascido é retirado por meio de cirurgia de acesso ao útero —, também é uma escolha da gestante. “A paciente tem o direito de optar pelo parto cesárea antes e durante o trabalho de parto, a partir de 38,5 semanas, por desejo materno”.

A cesárea é indicada em partos de alto risco e pode ocorrer em situações emergenciais, mas também pode ser escolhida pela gestante previamente. A operação é conduzida por dois obstetras e um anestesista, contando com apoio de mais profissionais de saúde, como enfermeiros, assistentes de enfermagem e neonatologistas.

Elis e Cinthia destacam que independentemente do tipo de parto escolhido (normal ou cesárea), a paciente deve estar acordada durante todo o processo. “Não é necessário sedar uma mulher em condições clínicas comuns. A sedação pode ser muito ruim para o pós-parto imediato, afetando a golden hour (hora de ouro do nascimento), onde acontece o primeiro contato entre mãe e bebê, a primeira mamada”, explica a enfermeira. Calsinski destaca que uma anestesia geral pode até ser necessária em casos de urgência, mas que esse tipo de sedação é algo “extremamente raro”.

Plano de parto

O plano de parto elaborado pela gestante deverá ser integrado ao seu prontuário médico quando der entrada no hospital ou clínica.
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O plano de parto serve como documento que assiste à gestante no momento do parto. Segundo Perico, a recomendação é preparar e protocolar o plano no hospital antes do nascimento. “Entrando no terceiro trimestre, é ideal já entrar na criação do plano com a obstetra ou a doula”.

O plano de parto não exige um modelo engessado ou normas gráficas, sendo um documento simples que detalha o que é importante para a mulher desde o início do trabalho de parto até o pós-parto. Ele pode ser impresso ou manuscrito, contando com assinatura ou nome da gestante, como uma carta de orientações sobre o parto. Após ser protocolado no hospital, ele deverá ser anexado ao prontuário da gestante, para que possa servir de guia à equipe médica.

Thais ainda destaca que o acesso a esse prontuário também é um direito da mulher. “O prontuário médico é direito da gestante e tem que ser fornecido sempre que solicitado. É um documento essencial, que diz respeito à intenção da mulher de acessar seus próprios dados, o que aconteceu desde o momento que ela entrou no hospital — um direito humano inegável”.

Elis Nogueira orienta sobre todos os elementos que compõem o plano de parto e que configuram escolhas da gestante:

  • Posição de parto: A gestante pode escolher como prefere se posicionar para o parto, e deve especificá-lo no plano. “A gente sempre busca a melhor posição de conforto para a paciente, em caso de parto normal. Pode ser semi-sentada, de cócoras, como ela se sentir melhor”;
  • Alimentação e ingestão de líquidos: É possível à gestante especificar o que quer comer e beber durante o parto. A recomendação da médica é optar por alimentos leves, de fácil digestão, “pois a partir do aumento das contrações, ela pode sentir muito enjoo por conta da dor”. A ingestão de líquidos é ideal para manter a hidratação. “No caso da cesariana, pedimos para não ingerir alimentos sólidos até 6 horas e não ingerir líquidos até 4 horas antes do parto, salvo em situações de emergência”;
  • Nível de força: Para evitar a pressão durante o parto, a paciente pode especificar orientações à equipe que a manterão tranquila e segura. “Sempre tentamos orientar sobre a melhor posição para exercer a força, que pode exigir um apoio de pé, de mão. A paciente tem que exercer suas contrações de forma efetiva”;
  • Analgesia: A medicação para alívio das dores durante o trabalho de parto deve ser autorizada pela gestante. “Não existe uma regra de dilatação para a analgesia”, explica Elis, “o ideal é que tenha um bom relacionamento entre médico e paciente para que ela possa optar entre fazer ou não a analgesia”. A parturiente também pode optar por não fazer uso de anestesia, se tiver uma boa tolerância a dor, mas tem o direito de mudar de escolha e solicitá-la a qualquer momento;
  • Amamentação e contato logo após o parto: Fundamental para a saúde da mãe e do bebê, a amamentação não só é sugerida como um direito da gestante, que deve ter o primeiro contato com o bebê assim que ele nascer. Essa orientação também pode ser descrita no plano de parto. “Preconizamos que a gestante seja a primeira pessoa a pegar o bebê, se ele nascer bem, tanto no parto normal como na cesárea. A amamentação também é fundamental, pois diminui a incidência de infecções, aumenta a imunidade do bebê, estimula o útero a reestabelcer suas funções após o parto”;
  • Cordão umbilical: Alguns pais desejam cortar o cordão umbilical, e esse desejo pode ser explicitado no plano de parto. “Se o nenê nasce bem, já colocamos no colo da mãe e esperamos passar o fluxo de sangue para cortar o cordão”;
  • Alojamento conjunto em tempo integral: O alojamento junto ao recém-nascido é prioritário após o parto, e pode ser especificado pela mãe no plano de parto. “Hoje, as grandes maternidades nem costumam permitir que o bebê fique mais de três horas afastado da mãe. É importante que ele (o recém-nascido) ouça a voz da mãe e do pai o tempo todo, pois está nove meses acostumado a isso”.

A obstetra ainda explica que, em casos emergenciais onde a saúde da mãe e do bebê está em risco, o plano de parto pode não ser cumprido, pois o bem-estar de mãe e filho é sempre a prioridade da equipe médica. Porém, qualquer alteração deve ser discutida e aprovada pela gestante. “É importante que a paciente seja comunicada de todos os procedimentos que serão feitos durante seu trabalho de parto, parto e pós-parto. Tem que haver uma relação muito boa de comunicação entre médico e paciente”.
Em caso de qualquer intercorrência que impossibilite a mãe, quem responderá pelos direitos da parturiente é seu acompanhante. “Se ela estiver desacordada por alguma fatalidade, conversamos com o acompanhante, mas sempre tentando fazer ao máximo o que a paciente pediu, desde que não ofereça riscos à vida dela”, conclui Elis.

Protagonismo materno

As escolhas da parturiente devem ser respeitadas e asseguradas pela equipe médica.
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A importância da humanização do parto e da conscientização sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher é uma peça fundamental no combate às violências.

Thaís Perico defende que o debate sobre o excesso de medicalização e patologização do parto impede a violência obstétrica. “As mulheres, que deveriam estar no protagonismo de seus partos, se veem vendidas aos médicos. A parturiente (se sente obrigada a) pedir autorização para coisas que dizem respeito ao seu corpo, ao seu parto, seu momento”.

Para a jurista, a solução para redução das violências está na construção de políticas públicas para as mulheres que correspondam aos tratados internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil é signatário. “Não são só as leis federais que são desrespeitadas quando lidamos com violência obstétrica. Nós estamos falando de tratados internacionais onde o Brasil assinou compromissos pela redução da mortalidade materna e infantil, tratamento humanitário, priorização do plano de parto, protagonismo da mulher, conduta dos profissionais de saúde… Muitos desses documentos já existem, mas não são aplicados”.

“É importante a criação de protocolos para que estejamos amparadas? Muito. Mas aplicar os que já existem também é essencial. Treinar os médicos, mas também quem recebe as denúncias: advogados, juristas, defensores. A violência obstétrica não é tratada do ponto de vista multidisciplinar. O enfrentamento pressupõe que essas pautas estejam no dia a dia”, conclui Perico.

Como denunciar a violência obstétrica?

Se presenciar ou vivenciar uma situação de violência obstétrica, a pessoa pode realizar uma denúncia por meio da Central de Atendimento à Mulher, pelo número 180; no Ministério da Saúde, pelo número 136; no conselho estadual ou municipal de saúde de sua região; nos conselhos médicos (CRM) ou de enfermagem (COREN); e também na ouvidoria do hospital onde aconteceu a violência.

O Ligue 180 funciona diariamente, 24 horas por dia. Também é possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil, pela página da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, e pelo Telegram – basta acessar o aplicativo de mensagens, digitar “DireitosHumanosBrasil” na busca e mandar uma mensagem para a equipe. A denúncia é gratuita, anônima e conta com um número de protocolo, para que o denunciante possa acompanhar o andamento do processo.

Violência obstétrica