A Lei Menino Bernardo, também conhecida como “Lei da Palmada”, completou três anos de luta contra a violência infantil no Brasil. O país está entre os 53 no mundo onde há uma lei que proíbe o uso dos castigos físicos contra crianças e adolescentes.
De acordo com um relatório divulgado recentemente pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), o Brasil recebeu diversas recomendações para aprimorar questões relacionadas aos direitos humanos no país, foram mais de 240, sendo que uma delas está relacionada à Lei Menino Bernardo.
O documento diz que o país deve “intensificar ainda mais os seus esforços para fazer cumprir a ‘Lei Menino Bernardo’ e promover formas positivas, não violentas e participativas de educação e disciplina”, o que dá indícios de que a lei ainda precisa ser mais efetiva no Brasil.
O que diz a Lei Menino Bernardo?

A Lei 13.010/14, que entrou em vigor no Brasil em 27 de junho de 2014, proíbe que os pais ou responsáveis legais de crianças e adolescentes usem castigos físicos e humilhantes como formas de correção e disciplina.
Segundo a Promotora de Justiça Fernanda Beatriz Gil da Silva Lopes, Coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Infância e Juventude e Idoso do Ministério Público de São Paulo, a implementação da lei é um grande avanço em benefício do núcleo familiar e da sociedade, e objetiva o convívio saudável e respeitoso, no qual se busca a construção de um espaço para o diálogo entre aqueles que se relacionam diariamente.
“Acredita-se que esse seria o ambiente ideal para que a criança e o adolescente sejam educados, indicando-lhes às diretrizes da educação proposta pelos seus responsáveis, com fundamento no respeito às diferenças e argumentando-se na busca de soluções”, diz.
Caso de Bernardo Boldrini
A lei foi batizada referenciando o caso do menino Bernardo Boldrini, de 11 anos, que foi assassinado em abril de 2014 na cidade de Três Passos, no Rio Grande do Sul. O caso chocante gerou um debate em relação à prevenção da violência contra a criança e o adolescente no âmbito familiar.
De acordo com as investigações, além de alguns vídeos mostrarem Bernardo sendo violentado pelo pai e pela madrastra, o casal teria ministrado uma superdosagem de sedativo a ele.
Inicialmente, Bernardo foi dado como desaparecido mas, dez dias depois, seu corpo foi encontrado enterrado em uma área rural da região. O caso ainda não foi finalizado, os réus estão presos e aguardam julgamento.
O que acontece com quem infringir a lei?
Ainda segundo a promotora, e como estabelece a lei, os responsáveis por cuidarem da criança ou do adolescente que infringirem a Lei Menino Bernardo, e forem caracterizados como agressores, receberão punições de acordo com a gravidade do caso aplicadas pelo Conselho Tutelar, dentre elas:
1. Encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
2. Encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
3. Encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
4. Obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;
5. Advertência.
Denúncias podem ser feitas por telefone

De acordo com dados do Disque 100, canal de denúncias da Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, o número de denúncias contra a violência infantil no Brasil caiu de 91.342 em 2014 (ano de implementação da Lei Menino Bernardo), para 76.171 em 2016.
Dentre as denúncias em 2016, 52.278 foram contra violência física, o que engloba autoagressão, cárcere privado, homicídio, latrocínio, lesão corporal, maus-tratos, sequestros e tentativa de homicídio, e o que representa 68,63 % de todas as denúncias contra a violência infantil.
Outro dado alarmante é que 22.179 denúncias em 2016 foram contra casos de lesão corporal, categoria que engloba a palmada, representando 42,43 % de todas as denúncias contra violência física contra a criança e o adolescente.
Para Marcia Oliveira, coordenadora da Campanha Nacional “Não Bata, Eduque”, o Disque 100 é o canal de comunicação de violência mais abrangente que há atualmente no Brasil, e é por meio dele que pode-se analisar o panorama das violações de direitos que ocorrem em todo o país.
“Ao analisar os dados do Disque 100 verificamos que, no período de 2013 a 2015, os percentuais de denúncia de casos de violência física diminuíram, o que pode ser um reflexo de uma maior consciência da população sobre o tema. Já em 2016 os índices de violência aumentam um pouco, e acreditamos que este aumento esteja relacionado às dificuldades econômicas e sociais pelas quais o país vem passando, à elevação do número de desempregados e à condição de extrema pobreza de parte da população”, afirma.
O caminho é longo
Apesar do aumento de denúncia dos casos de violência infantil em 2016, a queda destes números em 2014 e 2015 pode ser um indicador de que as diversas campanhas, iniciativas e atividades de prevenção que defendem esta causa estão surtindo efeito positivo.

Segundo Marcia, não há políticas públicas que tenham sido estabelecidas em apoio às famílias e educadores após a aprovação da Lei Menino Bernardo, mas organizações da sociedade civil, como a “Rede Não Bata, Eduque”, e algumas varas da infância vêm desenvolvendo iniciativas de apoio às famílias com informações que contribuem para o rompimento do ciclo de violência.
“O que sentimos é que, ao longo desses dez anos de atuação, a sociedade brasileira está muito mais aberta a discutir e conhecer práticas educativas não violentas. Há diversos grupos que, assim como nós, não acreditam na ‘palmada pedagógica’, e atuam discutindo o tema em blogs, grupos e redes sociais”, diz.
A cultura da palmada
Culturalmente no Brasil a violência física tem sido utilizada como forma de controle, disciplina e subordinação do outro, é possível constatar o uso dessa violência nos processos de colonização e escravidão que ocorreram na história da humanidade.
“Muitos adultos foram criados com o uso de práticas violentas (tapas, surras, beliscões, gritos, xingamentos ou ameaças), sendo esta a forma que eles conhecem e reproduzem, muitas vezes sem nunca terem se questionado sobre tal atitude. Muitos também acreditam que a autoridade e a disciplina só podem ser estabelecidas com o uso da violência”, diz Marcia Oliveira.
Dentre os estudos sobre os motivos pelos quais os adultos batem nas crianças, como forma de estabelecer disciplina e autoridade, os mais recorrentes são:
1. Também sofreram castigos corporais quando crianças e, em sua opinião, “nem por isso tiveram quaisquer problemas”, tornando-se adultos plenamente responsáveis;
2. Pensam que só com conversa os filhos não obedecerão;
3. Para descarregar a raiva por alguma coisa que a criança fez;
4. Perdem o controle emocional;
5. Para punir a criança por algum comportamento considerado inadequado e tentar fazer com que tal comportamento não se repita;
6. Para prevenir situações perigosas, como atravessar a rua, falar com estranhos, brincar com fogo;
7. Para fazer valer a autoridade paterna ou materna.
Consequências da palmada para a criança

Os efeitos do castigo físico e humilhante nas crianças dependem da experiência de vida de cada um e da sua configuração familiar. Entretanto, uma consequência direta da palmada é o aprendizado, por parte da criança, de que a violência é uma maneira plausível e aceitável de solucionar conflitos e diferenças, principalmente quando você está em uma posição de vantagem frente ao outro (como no caso do adulto em relação à criança).
Segundo a publicação “Violência Intrafamiliar – orientação para a prática em serviço – Cadernos de Atenção Básica – nº 8”, do Ministério da Saúde, os castigos físicos e tratamento humilhante podem se manifestar nas crianças e adolescentes nas seguintes formas:
Transtornos físicos
- Fraturas
- Fraturas de crânio (síndrome do bebê sacudido)
- Hematomas
- Lesões que reproduzam a forma do objeto agressor (fivelas, cintos, dedos, mordedura)
Transtornos psicológicos
- Aversão ao contato físico, apatia ou avidez afetiva
- Baixa autoestima
- Baixo nível de desempenho escolar
- Choro fácil sem motivo aparente
- Comportamento autodestrutivo
- Comportamento regressivo
- Comportamento submisso
- Conduta agressiva e irritabilidade
- Desenhos ou brincadeiras que sugerem violência
- Episódios de medo e pânico
- Fadiga
- Fugas, mentiras e furto
- Isolamento e depressão
- Tentativa de suicídio
- Transtorno do sono ou da alimentação
Violência não educa
A aprovação da Lei Menino Bernardo fomentou um questionamento entre os pais e responsáveis: “Se não posso bater, o que ponho no lugar?”. De acordo com Márcia Oliveira, para evitar ou diminuir os conflitos dentro de casa é importante conhecer as fases do desenvolvimento de uma criança, bem como suas características, limitações e os cuidados necessários em cada uma delas.
Muitas vezes, por desconhecerem essas etapas, os adultos esperam que a criança entenda alguma coisa para a qual ela ainda não está preparada, ou deduzem que ela ainda não é capaz de fazer algo que já pode fazer tranquilamente.
Para Marcia, não existe uma receita para garantir que o relacionamento na família seja sempre tranquilo, mas é importante não usar a violência para resolver certas questões que poderiam ser tratadas de outras formas.
Educação no Brasil
- Gritar com os filhos não adianta: o que é mais eficaz para educá-los?
- Reforma educacional: aluno do ensino médio poderá escolher o que estudar
- Saiba quais são os cinco principais erros na hora de educar os filhos