Beleza no divã

O ser humano é, por excelência, um insatisfeito com a própria aparência física. Salvas pouquíssimas exceções, tem sempre alguma coisinha por aqui ou por ali cansando literalmente a beleza. Mas até aí, tudo bem, mesmo porque se não nos dispuséssemos a passar por transformações de vez em quando, morreríamos todas de franjinha, calçando kichutes e melissinhas. O problema é que tem gente que sofre de verdade porque nunca achou bonito aquilo que viu no espelho. Com isso, criam uma bola de neve que acumula um sem número de tentativas frustradas de transformação, revelando, muitas vezes, um comportamento destrutivo que pode ter sua origem em uma série de problemas mais profundos de auto-aceitação.

A estudante paulistana Luana Vasconcelos, 19 anos, não titubeia e nem de longe parece estar fazendo gênero quando diz, com todas as letras, que se acha muito feia, embora haja sempre quem diga o contrário. “Às vezes, acho que meu problema é só ser gordinha, que emagrecendo vou ficar bonita, mas no fundo não acredito nisso. Eu não consigo me achar bonita, não vejo beleza neste rosto. Faço regime, tenho médicos me acompanhando, mas quando penso que vou emagrecer e continuar sendo feia, como mais e vai virando uma bola de neve”, diz ela. “É muito difícil ser gorda num mundo onde o belo é ser magro”, afirma.

Mas essa está longe de ser a fase de duelo mais drástico entre Luana e seu espelho. Seus problemas com a própria aparência já chegaram a comprometer seriamente sua vida social. “Eu passei quase um ano sem sair de casa, só indo às aulas, o que já era muito difícil pra mim. Usei drogas, bebi muito, fazia tudo pra fugir da realidade. Acabei descobrindo alguns valores com essa experiência e sei que hoje não quero mais isso pra mim”, conta Luana, que está fazendo tratamento com antidepressivos e apoio de um psicanalista. “Tenho altos e baixos, às vezes chega alguém, fala ou faz alguma coisa e me deixa pra baixo. Mas estou me aceitando mais agora, visivelmente. Tenho ido às festas, ao shopping, mesmo quando falto a aula, me sinto mal. Também tenho ido periodicamente ao salão fazer as unhas, saio de lá me sentindo sempre bem”, comenta ela.

Ao ponto de se fechar em casa e se render à depressão clínica, a comerciária carioca Marly Serpes, 64 anos, não chegou. Mas nem por isso ela esconde como é doloroso, ainda hoje, ter de conviver com o arrependimento estampado no seu físico. “Fiz cinco cirurgias plásticas no rosto e mais duas no corpo, duas lipoaspirações. Hoje não faria nenhuma delas e me arrependo sinceramente disso, me comportei como uma compulsiva, uma inconseqüente”, garante. Marly lembra que a chegada à faixa dos cinqüenta assustou sua vaidade e, do primeiro lifting para acertar a papada até a cirurgia que lhe modificou a forma do nariz, não se passaram quatro anos completos. “Sei que poderia ter envelhecido com mais dignidade e até mesmo mais bonita se não tivesse me entregado à idéia de que aquilo era a solução para uma insatisfação boba que eu tinha com o rosto e com o medo de despencar. O problema é que ainda hoje há uma mulher muito vaidosa dentro de mim que se contorce de arrependimento toda vez que se olha no espelho, que vai comprar uma roupa, cortar o cabelo, se arrumar para um festa. Eu não tinha idéia do que estava fazendo, não tive limites”, confessa Marly.

A psicóloga Vera Soumar explica que dificilmente se chega a um nível de satisfação total com a aparência, mesmo porque é essa mesma insatisfação que nos move pela vida. “É essa eterna e saudável insatisfação que nos leva a buscar o melhor. Mas quando se está sempre no negativo, é sinal de que a auto-estima está desestruturada. E, por mais que se invista no externo, não se conseguirá com isso resolver o interno”, diz ela. Segundo a psicóloga Ângela Kerber, o número de mulheres que enfrenta dificuldades na aceitação da própria aparência é grande, sobretudo em dois momentos da vida: a adolescência e a chegada à meia idade. “Na adolescência é imensa a quantidade de meninas bulímicas e anoréxicas, por exemplo. É a fase em que se começa a desenvolver o papel de mulher, tendo como meta mulheres já adultas, formadas. Como, às vezes, essa jovem não está madura e nem segura do papel que ela vai desempenhar, ela acaba não tendo uma boa percepção corporal, não consegue perceber no espelho aquilo que é realmente. É o mesmo problema da menina gordinha que não consegue se ver bonita, nem mesmo se emagrecer”, comenta ela, lembrando que com o amadurecimento, esses problemas tendem a diminuir.

O cirurgião plástico Marcelo Daher acrescenta, no entanto, que esse é um problema que não está restrito apenas às jovens. “Já operei mulheres, senhoras, tirando as bolsas debaixo dos olhos que, depois da cirurgia, se olham no espelho e continuam vendo as bolsas. Isso é o que se chama de BDD ou Body Dysmorphic Disorder, que é essa percepção errada do corpo”, afirma ele. Marcelo diz que convive muito com o problema no dia-a-dia clínico e que, se o especialista não conseguir passar para o paciente que seu trabalho tem limitações, corre-se um sério risco de iniciar um problema envolvendo expectativa e frustração.

Já na chegada aos cinqüenta, mulheres cujas vidas foram guiadas pela própria beleza física costumam se assustar com o medo de perder aquilo que julgam sua principal qualidade. “Para essas pessoas que pautaram a vida na própria beleza, como se não tivessem mais nada a oferecer ao mundo senão isso, a velhice entra como um elemento de desespero. A plástica, por exemplo, é vista como uma solução a curto prazo mas, novamente, entra aí a dificuldade de percepção corporal. Uma acertada ali, aqui, ginástica, cosméticos, tudo isso é ótimo, saudável. Mas muitas vezes isso entra em excesso e, quando o erro é percebido, já é tarde”, diz Ângela. Vera acrescenta também as cobranças sociais como fator decisivo na conturbação desse processo. “Tem gente que não consegue conviver com a idéia de estar fora do padrão estético. E, como não se chega a esse ideal, surge um distúrbio grave porque a pessoa, insatisfeita, entra numa linha de auto-agressão. Aí, volta-se a comer, a engordar, a fazer plásticas para consertar o que já se tinha estragado etc”, diz ela. “A busca pela felicidade é eternamente válida, só não pode atrapalhar o psíquico”, encerra.