Esta matéria foi publicada em 28/03/2014 e atualizada em 04/04/2014 após retratação do IPEA.
Pesquisa divulgada na última quinta-feira (27) pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revela que 26% (dado corrigido após retratação do Ipea, que divulgou primeiramente que o número seria de 65%*) de 3810 brasileiros entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação: “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. O dado faz parte do estudo “Tolerância social à violência contra as mulheres” e entrevistou tanto homens quanto mulheres. Segundo o instituto, os dados são preocupantes, já que configuram como culpabilização da vítima de estupro.
Na última semana, três casos de assédio sexual no transporte público de São Paulo foram denunciados. O assunto infelizmente é recorrente, mas agora tomou a imprensa e é uma amostra do que as mulheres passam cotidianamente, seja no ônibus, no metrô, caminhando pelas ruas ou até mesmo no trabalho.
Em outros dados levantados pelo Ipea, entre 2009 e 2011 estima-se que ocorreram mais de 17 mil feminicídios no país. Ou seja, em média, uma mulher morre a cada 1h30 vítima da violência no Brasil.
Segundo a Delpom (Delegacia de Polícia do Metropolitano), mais de 17 ocorrências de mulheres molestadas foram registradas apenas este ano no transporte público de São Paulo. Destas, 16 foram categorizadas como importunação ofensiva ao pudor, e uma como estupro.
Assédio, abuso e a violência sexual: o que é?
Campanha ‘Chega de Fiu Fiu’ (Crédito: Gabriela Shigihara/ThinkOlga)
Geralmente praticado por uma pessoa que assume poder direta ou indiretamente sobre outra, o abuso sexual não envolve necessariamente violência física, mas sim qualquer forma de constrangimento sobre um indivíduo em situação de inferioridade.
“O assédio sexual contra a mulher é um tipo de violência tão banalizada que é possível citar vários casos durante um único dia. Homens se sentem livres para nos ofender com palavras sexualizadas de baixo calão na rua, manifestam cenas em que seguram genitais e chegam até a tocar nossos corpos sem consentimento em transporte público, na rua ou no trabalho”, explica Carol Lopes, militante do Coletivo de Mulheres Ana Montenegro, movimento feminista que se propõe a conscientizar mulheres sobre temas diversos.
“Vivemos em um desejo compulsivo pelo corpo da mulher. Somos expostas como propriedade privada ou como objeto de consumo descartável na mídia brasileira. As relações amorosas são construídas com base no amor romântico. Ou seja, a mulher é a presa e o homem o predador. A mulher pura, delicada e frágil não pode manifestar desejos sexuais, enquanto o homem tem o aval para sequestrá-la e tomá-la a força”, explica Lopes se referindo à construção social em que uma mulher pode ser vista como propriedade de um homem.
Sendo assim, violência sexual pode ser qualquer ato de prazer sem o consentimento do outro.
Violência sexual em casa
“E não se engane. Não são só os ‘outros’ que fazem isso, os ‘nossos’ também fazem. Violência sexual não ocorre no trem com desconhecidos, mas pode estar aqui do lado. ‘Ah, mas o cara é amigo, apenas se excedeu.’ Não caia nessa. Por você e pelas outras mulheres,” alerta o jornalista Leonardo Sakamoto, no texto “Qual a diferença entre ser encoxada no trem e na balada?”, publicado em coluna do portal UOL, falando sobre casos em que a violência sexual acontece dentro do circulo social da mulher.
Assédio em locais públicos e a vontade das mulheres
Campanha ‘Chega de Fiu Fiu’ (Crédito: Gabriela Shigihara/ThinkOlga)
Idealizada pelas jornalistas Juliana de Faria e Karin Hueck, a campanha “Chega de Fiu Fiu”, que visa combater o assedio sexual em espaços públicos, realizou uma pesquisa que revelou que 85% das pesquisadas já tiveram seu corpo tocado sem permissão no espaço público. Além disso, 83% das mulheres consultadas declararam que não gostam de receber cantada na rua. O resultado contraria a ideia de que as mulheres gostam de receber elogios no espaço público proferidos por desconhecidos, argumento que, inclusive, neutraliza o assédio.
“É, sim, violência contra a mulher, independentemente do que digam os perpetuadores dessa prática. É impossível dissociar a ação desses indivíduos das demais agressões físicas e psicológicas das quais as mulheres são vítimas. São todas parte de um mesmo desprezo pelos direitos do próximo. É crime. Sempre que existe interação sexual não consensual é crime, e eles têm de ser individualmente responsabilizados por isso”, defende Aparecida Gonçalves, secretária nacional de enfrentamento à violência da Secretaria de Políticas para as Mulheres, do Governo Federal, em entrevista ao site Rede Brasil Atual.
O que leva alguém a assediar?
Mas, para os psiquiatras, a atitude pode ser originada por um transtorno de impulso. “Transtorno de impulso é quando uma pessoa tem vontade de alguma coisa e não controla. É normal andar na rua e achar uma pessoa bonita, mas isso não significa que você tem permissão para agarrá-la”, exemplifica a psiquiatra Magda Vaissman, do Rio de Janeiro. “Esta alteração psicológica faz com que a pessoa não tenha limites e nem freio social frente aos impulsos”, explica.
Ainda para a psiquiatra, por mais que o indivíduo seja fruto das experiências que viveu ao longo da vida, a atitude está relacionada ao caráter. “Infância conturbada ou cheia de violências e desrespeitos pode estar relacionada a essas práticas. Mas não necessariamente. É preciso existir uma predisposição de caráter para que haja esta prática. E o caráter é inato e não adquirido”, defende.
E o que fazer?
Além de buscar pela polícia e pelas autoridades do transporte público para realizar uma denúncia, também é possível ligar para o 180, número da Central de Atendimento à Mulher, do Governo Federal.
Punição
“O mínimo que o Estado deve fazer é punir os estupradores. As punições individuais podem inibir alguns maníacos. Outras ações mínimas que se espera são de ordem municipal, como: iluminação pública, saneamento básico, transporte 24h. Prefeituras que não iluminam as ruas, que não limpam os matos das praças, canteiros, terrenos e que não disponibilizam transporte público 24h, acabam por facilitar a violência contra os diversos tipos humanos”, defende Carol Lopes.
Educação
Campanha ‘Chega de Fiu Fiu’ (Crédito: Gabriela Shigihara/ThinkOlga)
Mais do que medidas imediatistas, o que pode mesmo pôr fim a estas situações é a educação, para prevenir esse tipo de mentalidade, e o empoderamento da mulher, para que ela tenha consciência de quando está sendo abusada e para que saiba que em hipótese alguma a culpa é dela.
” O corpo de uma pessoa é uma exclusividade dela, a roupa que ela usa não diminui esse direito. Aliás, roupa não previne o estupro em lugar nenhum do mundo. A forma como fala, anda ou se comporta, nada disso é determinante. O que mais pode ser feito? A minha única resposta é: empoderar mulheres para que elas saibam que ninguém pode tocá-las sem consentimento”, afirma Gizelli, colaboradora dos sites A Maior Digressão do Mundo e Ativismo de Sofá.
“O homem precisa começar a mexer na sua programação que, desde pequeno, o ensina a ser agressivo e a tratar mulheres como coisas. Raramente a ele é dado o direito que considere normal oferecer carinho e afeto em público. Bom é xingar, machucar, deixar claro quem manda e quem obedece. O contrário é coisa de mina. Ou, pior, de bicha”, finaliza Sakamoto criticando a forma como os homens são criados.

Retratação
*Atualização feita em 04/04/2013 após retratação do IPEA
Segundo errata publicada pelo IPEA, os resultados da pesquisa que até então mostravam que 65% dos entrevistados concordavam com a frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” estavam trocados.
De acordo com a retratação, 70% dos entrevistados discorda total ou parcialmente da afirmação, enquanto 26% concordam total ou parcialmente, resultado contrário do divulgado anteriormente. Mesmo com números menores, os dados não deixam de ser preocupantes e não deslegitimam o protesto online contra a culpabilização da vítima.