O casal nu

Janete e Manfredo brigaram. Rompimento daqueles de chapar amigos e convocar os mais fraternos para porres e confidências, hospedagens repentinas, colchonetes improvisados e aluguéis de ouvidos para lamúrias e queixumes. Todos que conviviam com o casal ficaram ocupados. Colinhos, ombros, lencinhos e doses de uísque foram solicitados e prontamente oferecidos. Na turbulência dos sentimentos à flor da pele, a discrição foi para o espaço. E na esteira das raivas e das mágoas, revelaram-se segredos e intimidades das mais prosaicas, inimagináveis, incontáveis.

Ele não tinha mais cuidado comigo.
Ela passava um dia sem ligar para o meu celular.
Ele não estava acompanhado a minha vida.
Ela não estava acompanhando a minha vida.
Ele não desgrudava o olho da televisão, diabo de Campeonato Brasileiro.
Ela estourava o cartão comprando sapato.
Ele passava horas ligando para a mãe, falando baixinho para eu não ouvir.
Ela cochichava com a irmã coisas que eu nem sabia.
Ele deixava cabelos do sovaco no meu desodorante roLl-on.

Ela deixava pentelhinhos grudados no sabonete. Eu sei que eram os delas. Conheço muito bem: curtinhos e enroladinhos.

Ele não queria pensar em filho enquanto o time dele estivesse ameaçado de ir para segunda divisão. Dizia que não teria a grande motivação de um pai, que é levar filho no cangote ao Maracanã.
Ela me pressionava com essa história de filho. Dizia que o peito cai quando se amamenta depois de uma certa idade.
Ele sofria de flatulência noturna.
Ela enfiava o dedo no nariz vendo DVD na cama.
Ele era um homem óbvio: não levantava a tábua para fazer xixi.
Ela era uma mulher previsível: reclamava que eu não levantava a tábua quando fazia xixi.
Ele roncava quando bebia.
Ela me sacudia com o cotovelo quando estava no melhor do sono.
Ele tinha mania de olhar para os pés nas sandálias de qualquer mulher mais nova que eu. Isso me irritava muito.
Ela tem joanete na família. A mãe dela tem um espetacular e me preocupa a tal da herança genética.
Ele tirou a barba sem me consultar. Ficou a cara da avó.
Ela desfiou o cabelo sem me avisar. Vai ver que não era para mim.
Ele vivia pelas madrugadas digitando no google “atrizes globais em nu frontal”.
Ela vivia abraçando todos os ex-colegas da faculdade que encontrava, com os olhinhos fechados e na pontinha dos pés.
Ele deixava cueca no chão.
Ela pendurava sutiã nas maçanetas.
Ele suava demais nos pés.
Ela tinha odores ácidos.
Ele devia resolver aquela fimose.
Ela já estava merecendo um silicone.
Ele andava com pressa na cama. Não era mais o mesmo. Virava para o lado e dormia.
Ela andava cheia de nojinhos na cama. Não era mais a mesma. Nem gemer gemia.
Ele dizia que não tinha saco para minhas amigas. Vocês, por exemplo.
Ela dizia que não suportava meus amigos. Vocês, por exemplo.

Solidários e atingidos, os amigos passaram a enxergá-los de um jeito diferente, tal a força indiscreta das revelações. As reações foram diversas: uns tomaram as dores, outros se esmeravam em conselhos, outros apenas acolhiam Janete ou Manfredo, alternadamente, sem nada mais a oferecer além dos ouvidos e alguns Engovs.

Uns juravam fazer de tudo para que os dois virassem suas páginas e caíssem nas delícias da solteirice. Outros prometiam apresentar Fulano ou Cicrana, que estariam vivendo a mesmo situação, e aí, quem sabe, nada como um novo amor para sepultar de vez uma vidinha chata e desgastada, segundo os relatos fidedignos. E assim partiram os amigos, cada um do seu jeito, para uma cruzada de cumplicidade, em nome do resgate da felicidade individual de um ex-casal de amigos queridos, em adiantado estado de degradação pública e decomposição afetiva.

Ah, o amor. Sentimento tão acima das razões, coerências, rancores e águas passadas, tão incompreensível e surpreendente quanto individual e intransferível

Mas não contavam com um fato novo.

Depois de um sumiço de quase vinte dias, souberam que os dois estavam numa pousada em Búzios, transando loucamente entre os lençóis, na hidromassagem, nos porões das traineiras, pelas praias desertas e, deliciosa reconciliação: com planos de comprar apartamento novo e discutindo apenas o nome do bebê, que passaram a sonhar e fazer por onde.

– Desgraçados.

– Me fizeram de palhaço.

– Foi só para chatear os amigos.

– Vou cobrar o uísque e o uso do colchonete.

– Ela não é mulher para ele.

– Ele não é homem para ela.

Ah, o amor. Sentimento tão acima das razões, coerências, rancores e águas passadas, tão incompreensível e surpreendente quanto individual e intransferível. Vai explicar.

– A gente explica, sim.

– Nossa separação não deu certo.

E assim Janete e Manfredo se reacenderam e seguiram a vida a dois, plena e fulgurosa. Entretanto, deixaram os amigos numa saia justa: ficou difícil olhar para o casal e não imaginar as flatulências noturnas, os pelos curtinhos e enroladinhos, as manias e anatomias, os gemidos, os roncos, os suores, os odores ácidos, as vergonhas e as intimidades desnudas e expostas em praça pública.

Mas, fazer o quê? Nada que o tempo não cure e que o amor não justifique.