Balé de cegos: fizemos aula com pessoas que dançam para desafiar suas deficiências

por | abr 3, 2017 | Comportamento

Imagine-se em uma sala ampla e com as luzes apagadas. Apenas você e o breu. De repente, música passa a tocar e uma voz firme dita uma série de passos de dança que você deve realizar. Agora, imagine a mesma sala com você e mais 15 pessoas seguindo rigorosamente cada movimento ditado pelo professor, tudo isso no escuro.

Além da questão técnica, há também dificuldade em preencher o espaço sem esbarrar ou derrubar um colega. Por fim, o equilíbrio do corpo fica afetado e a insegurança e o medo tomam conta. É isso que senti após vendar meus olhos e fazer uma aula de balé na Associação Fernanda Bianchini, que tem como principal objetivo o ensino da dança para deficientes visuais. 

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Sou bailarina clássica desde meus sete anos e fiquei impressionada em como a cegueira não impede as jovens de realizar os passos corretamente. Braços, pernas e tronco dançantes refletem anos de treino, garra e força de vontade de cada uma.

As coreografias em conjunto são guiadas pela voz do professor e o ritmo da música, o que permite uma uniformidade que eu julgava ser impossível sem a visão. Já a noção de espaço que esse sentido fornece foi substituída por vozes de voluntários e das próprias colegas, que indicavam a direção que cada bailarina deveria seguir. 

Neste ponto, eu ainda não havia tampado minha visão e apenas observava confortavelmente. Então, uma jovem de cabelos negros e pele bronzeada me perguntou se eu estava com uma venda nos olhos. Respondi que não e ela logo disse “Assim não vale”. Então lá fui: cobri minha vista e realizei a sequência mais difícil da minha vida.

Para se ter ideia, mesmo parada eu senti como se fosse cair. Em movimento não foi muito diferente: me desequilibrei em todos os giros e ainda terminei o passo para a lateral da sala (ao contrário das outras mulheres, que estavam todas de frente). 

Como resultado, voltei para casa pensando em quanto tempo perco sentindo falta do que não possuo, ao invés de valorizar o que tenho. E isso não tem só a ver com o balé, tem a ver com a vida.

O método de Ballet para Cegos

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Criado em 1995, o projeto surgiu de um convite feito à bailarina Fernanda Bianchini por uma religiosa do Instituto Padre Chico, uma casa voltada ao acolhimento e ensino de crianças e adolescentes com deficiência visual. “Na época, eu tinha 15 anos e fiquei com medo. Só aceitei porque meus pais me disseram para nunca falar ‘não’ para um desafio, pois é deles que saem os maiores aprendizados”, conta. 

Aos poucos, a professora foi tornando possível o impossível ao aprender quais eram as necessidades e modo de viver das pessoas com deficiência visual. “Foi um trabalho de tentativa e erro. Se eu não conseguia ensinar uma coisa, buscava outro método, como segurar elas no colo e me pendurar na barra de balé”, lembra a professora, que também se formou em fisioterapia para embasar todos os ensinamentos na ciência.

Foi a partir desse empenho Fernanda desenvolveu seu método. Sua principal característica é o ensino pelo toque. “O professor faz um movimento e o ‘congela’ para que as bailarinas usem o tato para mapear cada curva e forma pelo tato, aprendendo assim a realizar o movimento”, explica a professora.

Atualmente, o método é patenteado e reproduzido em países como Argentina e Estados Unidos. Além da sede da Associação Fernanda Bianchini, que fica em São Paulo (SP), outras escolas brasileiras no Recife (PE), Manaus (AM), Rio de Janeiro (RJ) e interior paulista também usam a técnica de Ballet para cegos.

Cia. profissional de Ballet de Cegos: única em todo o mundo

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A escola também agrega a Cia. Ballet de Cegos, que é o único grupo profissional de balé de cegos do mundo. Composta por 15 mulheres e cinco homens, ela ganha fama ao se apresentar em diversos estados brasileiros e diferentes países, como Alemanha, Polônia, Estados Unidos e Argentina. 

Na lista de momentos mais marcantes, entre as mais de mil apresentações anuais da companhia, está a participação no encerramento das Paralimpíadas de Londres em 2012 e na abertura dos Jogos Parapan-americanos em 2007. Outro destaque foi a apresentação no Festival Brave, na cidade polonesa de Wroclaw, em 2016, em que a Cia. foi aplaudida por mais de 10 minutos seguidos pelo público. 

O grupo também representa uma das fontes de renda da organização: anualmente, eles realizam apresentações motivacionais em escolas e empresas. O valor pago é refletido no cachê das bailarinas e dos bailarinos parceiros (que não são cegos) e o restante contribui com o sustento da associação

Assista a trechos de algumas das coreografias realizadas pela Companhia Ballet de Cegos:

A história de uma bailarina cega

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Uma das integrantes da companhia é a pernambucana Geyza Pereira, que também é uma das bailarinas mais antigas da associação. Sua história com a arte começou em um momento de transição e medo, mas a vontade de ser bailarina já persistia há algum tempo. “Desde pequena eu sonhava em dançar, mas não havia aula de balé no sertão e minha família não tinha condições de ir para outra cidade. Então eu aprendi forró”, conta.

Aos nove anos, uma meningite decorrente da neurocriptococose, doença provocada por fungos de pombo no cérebro, fez com que a jovem sonhadora perdesse a visão. Com o quadro irreversível, sua família se mudou para São Paulo para que ela pudesse receber tratamento adequado.

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Logo, passou a estudar no Instituto de Cegos Padre Chico. Na mesma época, a bailarina Fernanda Bianchini abrira sua primeira turma de balé clássico para cegos no local. “Eu estava muito triste pela cegueira e lembro que pensei ‘Como uma pessoa cega vai conseguir fazer passos tão bonitos iguais àqueles que eu via?’”, lembra Geyza.

Com o passar das aulas, a menina de então 10 anos passou a entender o quanto ainda poderia alcançar. “Só não fiquei revoltada com a deficiência porque vi na dança um refúgio. Foi por ela que me encontrei e hoje sou extremamente realizada”, explica Geyza com um sorriso de tirar o fôlego.

Hoje, aos 31 anos, a pernambucana é casada, tem um filho e atua como uma das bailarinas principais do grupo profissional. Ela também dá aulas de dança para grande parte das crianças e adultos que hoje integram a associação. 

Balé para cegos, surdos e cadeirantes

Em 2003, Fernanda Bianchini desfez a parceria com o Instituto Padre Chico e passou a ocupar uma sede na Vila Mariana, o que permitiu que alunos com diversos tipos de deficiência além da visual, como surdos, cadeirantes e portadores de síndrome de Down, fossem aceitos.

Atualmente, a associação conta com mais de 300 alunos que aprendem diversas modalidades gratuitamente, como balé, sapateado, danças de salão, do ventre, contemporânea, coral, expressão corporal e teatro. Eles também são isentos do pagamento de figurinos e taxas de apresentação.

Cerca de 10% do corpo de alunos é composto por pessoas sem deficiência, que realizam um trabalho de integração e inclusão às avessas.

Mães de bailarinas

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O trabalho não é uma alegria apenas para os alunos, mas também para suas mães. É o caso de Tatiane Santo dos Anjos, mãe de Júlia Vitória, 5. “Minha filha nasceu prematura e foi vítima de um erro médico que a deixou cega. Então, vimos na dança uma forma de estimular seu desenvolvimento. Há um ano que está aqui, ela já passou a se movimentar e falar melhor”, ressalta.

Júlia Vitória tem como companheira de aula a pequena Maria, uma menina de três anos que não possui deficiência alguma. Sua mãe, Mariana Ramos, conta que colocou a filha numa escola voltada a cegos para reforçar o caráter da menina.

“Eu e meu marido desejávamos que ela tivesse contato com crianças que têm limitações, mas conseguem realizar atividades. Hoje, vejo que fiz a escolha certa pois é muito bacana ela relatar em casa que a amiguinha consegue dançar e pular ‘como uma pipoquinha’. Isso será sensacional para a formação moral da minha filha”, ressalta.

Como ajudar

Por se tratar de uma associação que ensina gratuitamente, o Ballet de Cegos existe por meio de voluntários e doações de pessoas físicas e jurídicas. “Nos sustentamos por meio de contribuições, projetos de lei, patrocinadores e adoção de bailarinas”, conta a secretária Elaine Rosa de Lutiis.

Apesar de possuírem diversos meios de ajuda, a instituição tem dificuldade em captar recursos, o que é ressaltado pela diretora Fernanda Bianchini: “Eu não lucro nada, pois o projeto é voluntário, mas há meses em que preciso pegar dinheiro do meu bolso para pagar as contas. É muito difícil manter mais de 300 alunos”.

Além de ter maior apoio financeiro, há outro sonho vivido por todos da escola: uma sede própria. A atual é alugada e está pequena para a quantidade crescente de aprendizes. “Estamos com um número de alunos maior do que nosso espaço suporta. Mesmo assim, é difícil limitar as vagas porque essas pessoas chegam com muitos sonhos e vontade, sem falar que elas já recebem muitos nãos na vida. Se eu tivesse recursos, estaria com mil alunos”, explica a diretora Fernanda Bianchini.

Para ajudar, acesse o site da Associação Fernanda Bianchini ou entre em contato pelo (11) 5084-8542.

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