Já deve ter acontecido com você. Se não aconteceu, é uma questão de tempo porque mesmo os mais experientes cozinheiros acabam escorregando. Os motivos podem ser vários: um ingrediente que passou do ponto, um fermento vencido, alguma coisa batida demais – ou de menos – ou simplesmente um esquecimento. O resultado, na maioria das vezes, é um desastre, que geralmente acontece quando você está com dez ou doze pessoas famintas e ansiosas na sala ao lado. Em momentos assim, o importante é manter o sangue frio e não perder o rebolado. A sobremesa desabou? Tente uma versão “desconstrutivista” da danada. Ponha os escombros em um prato bonito – pratos individuais também servem – enfeite com raspas de chocolate (ou de laranja, ou de limão) e mande bala. Se o desastre tiver acontecido com uma mousse salgada, jogue uns grãozinhos de pimenta-rosa ou de semente de papoula em cima e diga que é uma criação fusion, que você comeu recentemente no Soho, em Bangkok ou em Montmartre, você nunca se lembra direito… Conclua comentando casualmente que o desconstrutivismo é uma das tendências mais fortes da haute-cuisine contemporânea. Ninguém vai entender nada, mas enquanto isso, todos começarão a comer e você não só se livra da saia-justa, como ainda fica com fama de criativa e antenada. Puro jogo de cena!
Mas às vezes acontece de um erro se transformar num grande acerto, imortalizado e devorado por comensais em êxtase nos quatro cantos do mundo. É exatamente disso que vou falar hoje. A personagem principal do desastre que virou sucesso é uma torta de maçã de nome chique: Tarte Tatin (pronuncie Tárt Tátãn).
Fingindo que sabia exatamente o que estava fazendo, Stephanie jogou aquela conversa do desconstrutivismo – que ainda nem havia sido inventado na época – pegou um prato beeeem bonito e… tchuf!
O cenário é um pequeno hotel na frente da estação ferroviária da pequena cidade de Lamotte-Beuvron, a pouco mais de 150 quilômetros de Paris. O ano é 1888. As protagonistas são duas irmãs: Stéphanie e Caroline Tatin, ambas solteiras, cada qual com seus talentos.
Caroline, a mais nova, era uma espécie de relações públicas do lugar e encantava os hóspedes, em sua maioria caçadores, com sua sagacidade e inteligência. Stéphanie, mais velha e menos brilhante, era encarregada da cozinha. Felizmente, o que lhe faltava em sociabilidade, lhe sobrava em talento.
Um belo dia, no auge da estação de caça, casa cheia, Stéphanie chutou o balde. Talvez tenha acordado de mau humor, talvez tenha sido culpa dos hormônios ou simplesmente ciúme de ver a irmã, mais nova e mais bonita, flanando no salão enquanto ela esquentava a barriga no forno. Não me cabe tecer julgamentos, até porque seria uma tremenda injustiça. O fato foi que na hora da sobremesa, Stéphanie jogou um quilo de maçãs cortadas numa fôrma com açúcar e manteiga, colocou para cozinhar e esqueceu o assunto. Em pouco tempo, o perfume das maçãs carameladas tomou conta do restaurante do hotel, para o deleite dos hóspedes, que já salivavam, imaginando a delícia que os aguardava. Foi só nesse momento que Stéphanie – já comentei que ela não chegava a ser brilhante? – se deu conta de que havia esquecido da massa da torta. Agora tinha nas mãos – ou melhor, no fogão – um doce mutante que não podia ser torta porque não tinha massa e nem podia ser compota, porque a fruta não estava totalmente cozida.
Na época, não havia nada nem remotamente parecido com lojas de conveniência, tortas congeladas ou um sorvetinho-coringa para salvar a pátria. Perdido por perdido, Stéphanie resolveu entregar a Deus. Sem perder um minuto, fez uma massa de torta e estendeu-a por cima das maçãs, colocando o conjunto da obra no forno. Agora, só lhe restava rezar. Cerca de quinze minutos depois, tirou do forno uma sobremesa de aspecto estranho, sob o olhar preocupado da irmã. Fingindo que sabia exatamente o que estava fazendo, Stephanie jogou aquela conversa do desconstrutivismo – que ainda nem havia sido inventado na época – pegou um prato beeeem bonito e… tchuf! Desenformou a torta como se faz com um bolo. Sem dizer uma só palavra, Caroline pegou o prato e levou correndo para o salão, para alimentar o grupo de caçadores famintos, que já começava a ficar impaciente.
O final da história, muita gente conhece. A bobinha da Stéphanie – boba???!!! – criou nada menos que uma das mais famosas sobremesas francesas de todos os tempos, imortalizada até hoje em restaurantes como o Maxim’s, de Paris.
A receita? Dou, sim. Não é minha mesmo! Prepare, arrase e agradeça a Stéphanie – que de boba, não tinha nada – pelas graças alcançadas.
Tarte Tatin
Descasque cerca de um quilo de maçãs e corte-as em quartos. Se você não tiver muita prática, pingue suco de meio limão sobre as maçãs para evitar que escureçam antes de você acabar o trabalho.
Detalhe: “cerca” de um quilo porque a quantidade pode variar. Você precisará de maçãs suficientes para preencher toda a extensão da fôrma.
Agora, pese 150 g de manteiga e unte fartamente uma fôrma redonda de 25cm de diâmetro e bordas relativamente altas. Depois de untar, coloque a manteiga restante picada, no fundo da fôrma.
Polvilhe 125g de açúcar sobre a manteiga.
É hora de arrumar aquelas maçãs cortadas na fôrma, com o lado curvo virado para baixo. Lembre-se que essa será a parte de cima da torta. Portanto, capriche na arrumação.
Comece a cozinhar no fogão, em fogo baixo, por 20 a 30 minutos, para ir acompanhando bem de perto o processo de caramelização das maçãs. Nem pense em mexer, pelamordedeus! No máximo, vire a fôrma com cuidado para um lado e para o outro, para distribuir o caramelo por igual.
Quando o caramelo estiver com aquela linda cor de… caramelo (!!), leve a fôrma ao forno entre 180 e 200° por mais 15 minutos.
Agora é a hora da massa. Se estiver inspirada, misture 250g de manteiga com 2 xícaras de açúcar e vá colocando 2 1/2 xícaras de farinha aos poucos, até desgrudar das mãos. Então, abra numa superfície enfarinhada, estique bem até um tamanho ligeiramente maior que o da fôrma e cubra as maçãs. Se não tiver tempo a perder, faça como eu: use massa folhada pronta, já previamente aberta e fim de papo. Na hora de colocar a massa na fôrma, faça de conta que você está cobrindo um filho no auge do inverno: encaixe a massa com cuidado, por dentro da fôrma, sem apertar muito, para evitar que o caramelo transborde.. Asse por mais 15 a 20 minutos.
Quando a massa estiver dourada, tire do forno, deixe descansar por 5 a 10 minutos e desenforme.
A vantagem de usar a massa folhada é que, diferentemente das receitas convencionais, onde as frutas ficam por cima, abafando, umedecendo e comprimindo a massa, na Tarte Tatin, a massa folhada fica livre, leve e solta para crescer e estufar em mil folhas crocantes.
Se a história se passou exatamente assim, nós nunca saberemos. O que se sabe – e não há dúvidas – é que poucas experiências gastronômicas são tão deliciosas.
O Hotel Tatin? Continua lá, no mesmíssimo lugar, em Lamotte-Beuvron, em frente à estação de trem, atraindo caçadores e turistas de todo o mundo, ansiosos por provar in locco o resultado de um dos erros mais acertados da história da cozinha.