Ainda na Suíça, vovó trabalhou por muito tempo no consulado inglês. Dessa época, além de amigos que permaneceram até a morte, ela trouxe um hábito diário: o do chá.
Com ela, aprendi que o famoso, antológico e cultuado chá inglês das cinco é, na verdade, servido às quatro horas. Como vovó era uma pessoa flexível, consumia o dela às quatro e meia em ponto, nem um minuto a mais.
O preferido era o Lapsang Souchong, um chá descrito como tendo aparecido em meados do século XVI, no Ceilão (Sri Lanka, a partir de 1931). O que torna o Lapsang Souchong tão especial é o fato de ser defumado e ter aroma de alcatrão. Reza a lenda, que enquanto as folhas de chá estavam secando, houve um incêndio que queimou parte do produto. Os cingaleses, que não eram bobos nem nada, não tiveram dúvidas: separaram o chá que pôde ser aproveitado e enviaram para Portugal e para a Inglaterra. O chá, defumado pela fumaça do incêndio, agradou em cheio a alguns paladares mais ousados e tornou-se produto de exportação.
Voltando a vovó, ela tomava esse chá ou o preto, sempre “com uma nuvem, por favor”. Esse hábito do chá com leite é uma coisa muito inglesa. O leite deve ser frio, cru e apenas pingado no chá, formando “uma nuvem”. É lindo de ver.
As xícaras eram finas, azuis e brancas e havia o ritual de servir apenas um dedo em cada uma delas, primeiro para aquecê-las e segundo para dividir entre todos a bebida mais fraca, antes da infusão completa.
Vovó defendia o hábito do chá com unhas e dentes, mesmo no auge do verão. Segundo ela, a bebida era perfeita nos 365 dias do ano porque esquentava no inverno e fazia suar no verão, ajudando o corpo a atingir seu equilíbrio térmico. Para acompanhar, sempre havia algo interessante. Geralmente, um bolo inglês com frutas cristalizadas ou um de açúcar mascavo, delicioso.
Um ano, sem saber o que dar a ela de presente, comprei uma caixa de biscoitos amanteigados. Foi sucesso total. Desse dia em diante, vovó trocou o bolo pelos biscoitos, que vinham em belas latas decoradas.
Esse presente marcou uma fase muito especial de cumplicidade entre nós. Vovó era diabética e, com o tempo, a pressão alta e o açúcar lá em cima, passou a ter restrições alimentares seríssimas, embora continuasse fumando seu maço de cigarros mentolados por dia (segundo ela, o médico tinha liberado o fumo até os 99 anos). Mas a geléia que ela adorava, por exemplo, só nos finais de semana. Eu entendia perfeitamente o racional da coisa, mas morria de pena. Pensava sempre em quanto tempo mais ela teria e se valia a pena tanta privação. A resposta veio dela mesma.
Em outra ocasião, levei mais uma lata de biscoitos, que ela escondeu no fundo da cesta de tricô. “Se a sua tia vir isso, mata a gente!”, disse, com uma piscadela. Entendi o recado. Poder, podia. Só que era segredo. Desse dia em diante, passei a levar coisas proibidas com um pouco mais de freqüência. Ora os biscoitos, ora trufas, ora alguma coisinha com a cara dela que eu encontrasse.
Por anos, visitei vovó uma vez por semana, sempre aos domingo à tarde, sempre para o chá. Assim, ela acompanhou minha gravidez, o nascimento e os primeiros passos da minha filha. Sempre contando histórias. Sempre tomando chá. Não é à toa que eu gosto.
Aqui, para acompanhar o chá da minha avó, o bolo de açúcar mascavo que ela fazia e que eu continuo fazendo, para matar as saudades.
Bolo Mascavo
3 xícaras de farinha de trigo
3 colheres (chá) de fermento em pó
2 colheres (chá) de canela,
1 colher (chá) de noz moscada
1 colher (chá) de cravo
200 g de manteiga
1 xícara de leite
2 xícaras de açúcar mascavo
3 ovos, com as claras separadas das gemas
Peneire: a farinha de trigo, o fermento, a canela, a noz moscada e o cravo.
Bata a manteiga com o açúcar, junte as gemas e o leite, alternando com a farinha e, por fim, as claras em neve. Coloque em uma forma untada e polvilhada com farinha de trigo. Asse por uma hora em forno médio.
Do céu, vovó dará pulos de alegria!